sábado, 7 de novembro de 2009

Memórias de Maria


D. e S. Deus os proteja!

Fiquei feliz com a tua cartinha, feliz também por saber que mudaram de casa e sempre mais apaixonados.
Vou escrever um pouco do meu passado: você pediu.
Pais maravilhosos. Mamãe dezesseis filhos, contente e alegre, com onze anos, a cavalo, três dias de viagem com vovó a Angelina. Minha tia ia ter o primeiro filho. Voltamos. Tudo correu bem.
Com catorze anos fui para o colégio de Laguna. Estudei, fiz muitos trabalhos, pinturas, quadros, almofadas, agulha mágica, bordados, piano. Nas horas vagas tocava violão. As internas dançavam, cantavam, por fim recebi telegrama: vovô passando mal. Queria retornar, minha tia convidando para madrinha do seu filho: lá fui eu quatro meses com ela. 
Com saudades, voltei, recebi muitas cartas e não respondi uma. Gostava de um só: o Agostinho.
Aproveitei bastantes festas, papai era sócio de dois clubes. Cinco anos depois casei. Fui muito feliz.
Agostinho cortou o pé muito profundo, foi mal para a capital, quarenta dias internado. Com muito tratamento teve alta. Foi cortar o cabelo, a barba, sentou no calor de um doente de sífilis. Contente, não pensou no pior. Mais tarde foi que o médico contou o que havia acontecido: 
- Sífilis não tratando passa para lepra. É triste mas é o seu caso! Logo estará bom!
Irmã Veraldina superiora do Educandário. Levou as duas (minhas filhas), quatro anos lá. 
Ele (o marido) teve alta, morreu de hemorragia no nariz. Casamento não é sempre flores. Vendi casa, bens, tudo mais. Vim para Florianópolis. As duas casaram. O dinheiro do banco gastei, emprestei, a vaquinha morreu. Terminou a história.
Meus pais nasceram no Brasil, os avós na Alemanha. Papai no tempo de guerra o que mais podia levar enterrou dinheiro. Quando lembrou, quase tudo perdido: loja de peroba, armazém. Muito prejuízo! Fábrica de banha, loja em casa, por três vezes assaltada. Grande compra de mantimentos, açúcar. Não recebeu. Tubarão, Laguna, Florianópolis, os empregados roubavam.
Pra escrever tudo dava um jornal! No fim sobrou a churrascaria. Casa, terreno, criação, sem um.
Não repara os erros, escrevi à noite.

Mil beijos a ti e ao S.
Maria Phillippi Michels 
Ich Libe dich S. ouf.
1999

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O que vai ser

Alguma coisa faz pensar...
Talvez o medo de que tudo acabe, num piscar de olhos,
Talvez a necessidade de sempre esperar o pior.
Como não sentia que poderia ser feliz.
Como tentava tanto desvendar os sinais...
Eles estavam na cabeça, na imaginação, na fantasia?
Ou, eles eram de fato sinais...
Acordou bem cedo...
Queria encontrar respostas!
Parecia que todos a sua volta estavam partindo...
Junto com eles, até a certeza do futuro próximo,
Cheio de tudo aquilo que por tanto esperou.
Da noite pro dia, já não sabe mais se vai conseguir libertar os felinos.
Da noite pro dia tudo pode mudar, como uma vez...
Há algum tempo atrás.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Queria mesmo mergulhar num abraço,
Queria mesmo saber em qual lugar colocar a dor.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Que Deus?

Lutava contra tudo.
Contra aquela criança que insistia em não crescer,
Contra aquela senhora que teimava em ficar de pé,
Contra a mulher para quem seu Deus lembrou de esquecer.
Pensava em tanta coisa.
Na garota que descobriu o amor,
Na mulher que se sentiu amada,
Nas fotografias que a fizeram ver.
Queria ser maior.
Esquecer de tudo, como quem perde a memória,
E recobrar a lembrança daquilo que era bom.
Ter força pra agüentar a perda,
Direção para acertar o rumo,
Certeza de um recomeçar.
Mas havia o homem e a sua austeridade,
Que nem mesmo abrigo garantiu lhe dar,
Cheio de zanga diante da morte, e que também por isso,
Deixou de acreditar no Deus que se esqueceu de lembrar da mulher.
E ainda havia tanta coisa...
A amiga, sumindo aos poucos,
O ventre, sem preencher,
As dores que permaneciam,
E o vazio, e o vazio.
Lutava contra tudo e queria ser forte,
Para esquecer das linhas que não foram escritas pra ela,
Acreditar na volta do amor que a deixou,
E tudo isso é nada, diante da história do moço que apanhava da mãe,
Do avô que morreu de lepra, deixando a moça sem um par,
Da mulher que lhe deu a vida, mas acabou envelhecendo e não conseguiu mais ficar de pé.
E tudo isso é nada,
Diante das armadilhas,
Diante da incapacidade de não responsabilizar ao Deus que não crê,
O Deus, aquele mesmo que a mulher tanto acredita,

Aquele mesmo que lembrou de lhe esquecer.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Três sem um

A casa parece tão desarrumada... Nem bem acabaram de arrumar o banheiro e as louças já estão caindo. Luz, não há, apenas luminárias postas sem nenhum cuidado estético. Tem box, e é novo, mas ele mais parece uma daquelas cortinas que grudam na pele enquanto a água escorre. A casa está mesmo uma bagunça. Tanta gente que nem consegue reconhecer. A velha caminha de um lado pro outro, rapidamente, recolhendo a sujeira que está no chão, as roupas que foram deixadas pra lavar. Como ela é ágil! Não pode ser! Não é ela que nem ao menos consegue tomar banho sozinha? Está tudo mesmo uma bagunça. São imprevistos que a impedem de ir pra frente. O fim de semana não é dela. E o irmão agonizando no hospital não importa. Desesperadamente, tenta encontrar um caminho. E a rua, ergue-se em explosões, atingindo a todos. Como num movimento de refugiados, eles tentam escapar. Mas ela está sozinha, perde os contatos ao desviar dos buracos do chão. Não conhece ninguém, mas vê a velha caminhando junto aos outros. É preciso voltar! Acompanhá-la! Não deixar que se perca diante da multidão. Perde o olhar! Vê aquela que sacaneou o amigo se dar bem. E tem a capacidade de mandar, lá debaixo, um "vá se foder!" De volta para o rastro da velha. Quantas estão ali? Qual delas deve seguir? Lá está ela, que alívio! Estende os braços para tocar em seu ombro e se depara com um rosto que não conhece. Perde a referência. Não sabe mais o que fazer... Precisa voltar pra casa, mas o fim de semana nem é dela e a velha não está mais ali. Não sabe mais o que fazer...

sábado, 22 de agosto de 2009

Novo olhar

Já passou do meio do ano. Enfim o final está chegando.
Ainda é agosto e o cheiro do verão paira através da lembrança.
Planos, planos e planos. Contagem de tempo, de horas.
Está ansiosa. Pensa nas duas aplicações de quimioterapia que ainda faltam.
Não sabe de seus sentimentos.
Quer que aquela mulher, agora presa, liberte-se.
Quer que a outra, também presa, descanse.
Mistura compaixão ao cansaço. Nessa confusão, confunde seus desejos.
Está transformada. Quer crescer, fazer algo, mudar de vida...
Teme tanta coisa e ao mesmo tempo já não tem medo de nada.
É capaz. Mergulha nos livros, no projeto de vida, na vontade de ter filhos.
Vê-se por dentro, confrontando suas angustias com a lógica e o bom-senso.
Deleita-se com os novos olhares sobre a cidade que tanto repudiava.
Vê gente sendo feliz.
E aquela criança de nem dois anos se encanta com o cão negro, forte, tão maior que o seu frágil corpinho.
Afaga, diz "au, au!" Como será que ela o enxerga?
Diferente de muitos, certamente, porque a vida ainda não lhe fez temer o desconhecido...
Enquanto isso as pessoas passeiam, com seus pares, com seus filhos, com seus animais de estimação.
Circulam procurando o verde pequenamente presente na cidade de concreto.
Mas eles estão ali, de mãos dadas. Novamente de mãos dadas, compartilhando alegrias, angústias, momentos futuros incertos...
Vida, vida e vida que quer mais. Vida que acredita, que se dá ao direito de uma segunda chance.
Momentos que provocam faíscas, que acendem o fogo, e que com um "cadinho" de paciência, amizade, companheirismo, compreensão, podem fazer o inverno se transformar em verão.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Sonho

Tentava reunir o que não prestava. Eram caixas e caixas de coisas guardadas. Todas elas coloridas, cheias de objetos, papéis, adereços e significados.
Tinha que escolher cada um deles para colocar fora. Era difícil, mas percebia que era a saída.
Juntava tudo num saco. E lá ao longe, no terreno baldio, depositório de tudo que devia ser deixado, colocava.
Lugar de experiências, de infância, de brincadeira.
Mas o menino estava ali, apontando sua flecha e tendo ela como alvo.
Não podia se machucar no momento. Ainda havia muita coisa para deixar e arrumar.
Tentou jogar um pouco das coisas na privada, dar descarga, mas algumas ficaram boiando. Tudo molhado, sem possibilidade de uso, então teve de retornar ao terreno para colocar fora ainda mais... Exigiam que ela se desfizesse de toda a tralha.
O menino estava lá, junto com outros, brincando. Queria pra ele aqueles objetos jogados no lixo.
Não conseguia entender por qual razão aquele carrinho sem roda o encantava. Ele dizia: - Não tem problema! É um carrinho grande, sem rodas mas grande! Dá pra brincar.
Ela, contudo, não admitia que ele quisesse um carrinho tão avariado. Então prometeu trazer-lhe um novo, tão novo como aqueles que desejou quando era pequena e que sua mãe nunca lhe dera.
Ela voltou para terminar de arrumar tudo, e isso sem esquecer de que precisava comprar um carrinho para dar ao menino.
Tinha uma companheira, jovem, cheia de planos e compromissos.
Queria conversar com ela, explicar que não conseguia jogar tudo fora.
Mas a garota seguia em frente, falando ao celular com todos que a ligavam.
Seu ritmo era diferente, da juventude...
E enquanto seguia a garota, que andava pelas ruas falando ao telefone montada numa bicicleta, mal conseguia perceber a paisagem, as casas construídas recentemente e cheias de inovações.
Uma delas, teve tempo de perceber. Tinha um mar no telhado. Era linda, sugeria muita coisa. Mas ela sabia que por atrás daquele mar havia o abismo cheio de concreto. Enquanto isso a garota corria cada vez mais, sumindo em vista das curvas e da descida do morro.
Pensou então: o que me prende a esta pessoa, com planos tão diferentes dos meus?
Sentiu-se aliviada. Não precisaria ficar ali, ao lado dela. Estava de partida pra recomeçar sua vida, e aliviada, ficou feliz com sua decisão. Via agora sentido para esvaziar as caixas coloridas e até mesmo ter de deixá-las para trás.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Por qual razão?


Hoje o dia amanheceu rodando. Queria fazer um pouco de tudo, mas o chão estava distante. Precisava ler os livros e não conseguia ver as palavras. Só queria um ombro amigo. Percebeu! Todos estavam tão longe. Suas vidas foram levadas, pela viagem, pelos amores, pela necessidade do encontro com o mundo. Estava sempre ali, ouvindo, ouvindo, ouvindo. E quando sentia que era preciso falar, vazio. Lá fora, só havia a chuva, o barulho dos carros passando e passando. Tinha saudade de tanta coisa! Da época em que não tinha dúvidas de ser amada. Sentia falta do tempo em que o dia amanhecia rodando, mas a mão estava sempre ali, a lhe dar equilíbrio. Quanta coisa aconteceu depois. Tentava olhar para aquela que lhe deu a vida, tão frágil, tão forte. Sentia raiva. Não queria, mas lá no fundo a responsabilizava por tudo. Não era a possibilidade da morte que a incomodava. Era a impossibilidade da vida. E assim, seguia o seu destino. Insana, quase desmoronando. Era ela, a solidão dos outros, as incertezas dos outros, as paixões dos outros, as alegrias dos outros, as necessidades dos outros. Era ela! Apagada, ali invisível, querendo ser percebida aos olhos dos outros. E por qual razão isso tanto importava? Não sabia. Talvez buscasse nos outros uma desculpa que justificasse a sua desprezível auto-piedade.

domingo, 5 de julho de 2009

Desejos

Deita-se ao lado. Olha nos olhos. Estica-se, aninha-se e a pele parece ser tocada. Sente-se entorpecida. Os pés se encaixam. As pernas vão chegando cada vez mais perto. O coração bate forte. De desejo, de angustia. A água esfria a garganta, aquecida, seca. A boca molha, faz morder os lábios. E as mãos vão deslizando, tomando mais e mais movimentos. O cheiro fica presente, a respiração sai como brisa. Aproximam-se em sons, em sorrisos, em suaves movimentos de línguas. Apenas deseja. E sem consequência, aceita ser desejada.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Encontre-me!

Levante! Caminhe! Encontre-me aqui!
Me toque e me pegue! Retire-me daqui!
Me envolva! Me beije! E faça-me sair!
Me de força e leveza
Pra que eu possa voar junto a ti.

É certo! Agora, não tenho medo de cair!
Quero alimentar a criança, 
Que pode estar por aí.
Quero estar contigo nos momentos de sorrir.
E caminhar de mãos dadas
Pelas estradas que irão surgir!

Levante! Caminhe! Encontre-me aí.
Estarei sempre ao teu lado, 
Querendo te fazer seguir!
Te envolverei em meus braços, 
Sempre que quiser dormir!
E acordarei em teu corpo, fazendo-te sentir.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A alma do guarda-roupas

Mais um ano se passou e ela continua resistindo à vida. Está cansada, do corpo, da idade, mas consegue se alegrar diante da possibilidade de viver a vida dos outros, de sonhar outros sonhos. Alegra-se ao ouvir histórias, ilumina-se ao contar as suas. Insiste em querer tudo no lugar, não esquece de dar importância à harmonia das coisas. E mesmo diante da incapacidade de mandar no guarda-roupas de sua alma, que não consegue mais ter suas portas fechadas porque a tranca quebrou com o desgaste do tempo, traz beleza ao quarto. É preciso paciência e compreensão, porque vez por outra a porta do guarda-roupas se abre, atrapalhando o caminho de quem circula por ali. Mas se o armário não dá conta de se manter fechado, deixa que sejam vistas as nuances de seu interior. E quem não se surpreende e se encanta ao percebê-las no despontar da noite, perde a paisagem, deixa de lado o que pode estar para além do olhar.
(Para a vó!)

domingo, 31 de maio de 2009

No bar da Déia

Um brinde!
Agui: - Peraí, deixa vir a Caipira dela!
Haviam passado por mil experiências. Foram casamentos interrompidos, amores deixados, novas possibilidades surgindo, problemas, frustrações e alegrias...
Um copo a mais de caipira...
Agui: - Eu não ficava com ninguém, fazia festa, saia com tudo mundo, mas era certinha, nunca ficava com ninguém!
Gi: - Nunca ficava com ninguém? Nem o Januário?
Agui: - Nem o Januário.
Gi: - É, tá certo! Aquelas marcas no pescoço, aquele cabelo esculhambado... É, tá certo, não ficavas com ninguém!!!
- É, não ficava com ninguém.
Todo mundo ali seguiu sua vida.
Uma casou, foi morar no exterior, depois voltou, e aí veio a separação, a partilha dos bens, partilha bem desigual... e a falta de grana. Não quis voltar pra casa dos pais. Acabou ficando em São Paulo. Trabalhou numa multinacional durante um tempo, mas aí veio o desemprego. Agora trabalha em eventos, viajando por quase todo o Brasil. Mas é "foda", segundo ela, porque há meses em que não rola nada e a coisa aperta. O legal é que sempre arruma um tempinho para visitar a mãe, porque o pai já morreu. Nessa, sempre acha um modo de ligar pras amigas, visitar, deixar uma lembrança dos locais por onde anda... Nossa! Como ela é leve!
A outra também casou e foi pro exterior. Depois voltou, separou, casou novamente, teve uma filha... É professora de inglês. Uma ótima professora, mas segundo ela, professora... Perdeu a mãe quando tinha uns 20 anos. De câncer. Ficaram ela, duas irmãs mais novas e o pai.
Gi: - Eu tô desde fevereiro sem receber porque o estado me apagou do sistema... então tô no vermelho, mas a tia, a irmã do meu pai, tem uma filha que era professora. A minha prima era professora, mas daí a minha tia ajudou e ela deixou de ser professora... Os meus avós morreram!
Adri: - Os teus avós morreram? Quanta coisa a gente fez na casa da tua vó! A gente saía da praia e se juntava na varanda com um pote de pipoca. Daí os surfistas faziam uma roda ali. Nossa, era uma coisa!
Agui: - Se era! O André de Biase... Sabe o André de Biase? Ele ia ali, e na época ele ainda tinha cabelo. Tempos áureos!!! Tu ainda era pequena.
Deby: - Eu era criança ainda.
Gi: - É verdade, como tu cresceu! O que tais fazendo?
Tanta coisa eu podia contar. Namoro, viagem, casamento, mestrado, retorno, separação...
Gi:: - Tais separada? Tu não era casada com um loiro?
Deby: - Sim, a gente se separou, mas agora voltamos. Ele tá em São Paulo, mas estamos retomando... Sou professora também, de história. Vou tentar o doutorado e ir pra lá, ou pra Portugal. É um sonho.
Gi: - Eu morei três anos em Portugal, é lindo! Mas daí voltei.
Adri: - E nunca mais visse o Robson?
Gi - O Robson não vi mais. Ele viajou, tá na Itália. Casou. Ele é gay.
Deby: - Ele casou com um gay?
Gi: - Não, ele casou com uma mulher mais velha, lá na Itália, mas é gay.
Deby: - Como assim?
Gi: - A minha irmã sempre disse que eu é que não enchergava. Daí ele mandou um e-mail pro amigo que caiu errado na minha caixa. Dizia pro amigo que sentia muito a sua falta e que o amava... Eu não sei como aquilo foi parar ali! Ele é gay.
A outra também casou, teve filhos e separou. O ex-marido era um polha e só sabia fazer sacanagem. Ficavamos às vezes pensando como o cara podia ser tão babaca. Ela trabalhava com setor financeiro, mas tava despempregada já há um bom tempo. Resolveu pedir demissão para trabalhar com um cara que conhecia e o imbecil a demitiu em dois dias. Até agora ficava tentando entender a razão. Quando a proposta foi dada, pediu que saísse o mais rápido possível. Ela saiu, não chegou nem a ter direito ao seguro desemprego, saiu. Daí em dois dias o cara a demitiu. Tá levando um processo nas costas. O resultado ainda vai demorar, mas tomara que dê em algo.
Adry: - Tens visto a Marta?
Gi: - A Marta? Gente a Marta foi viajar, foi fazer o doutorado em Paris, lá naqueles negócios de igreja, teologia, sei lá. Só que ela chegou lá e a mãe dela morreu.
Agui: - A mãe da Marta morreu? A minha mãe nem tá sabendo disso!!!
- Morreu de que?
Gi: - Morreu de infarto?
Deby: - De que? De vácuo?
Essa caipirinha...
Gi: - Não sei do que ela morreu, mas ela morreu, daí a Marta teve de voltar pra enterrá-la. E logo depois eu passei na frente da casa dela e eles tavam dando uma festa, uma festa chique, com mesa posta. Nunca mais falei com ela. O pai dela tá com Alzeimer. Não sei o que ela tá fazendo! Eu sou professora. Eu adoro ser professora.
Agui: - Eu não sabia que a mãe da Marta tinha morrido.
Gi: - Gente, eu vou dizer uma coisa pra vocês. A minha prima era professora, mas daí a minha tia deu ajuda pra ela. Então ela deixou de ser professora. Ela tá bem feliz. Mas eu também sou professora. Eu sou feliz, eu adoro a minha profissão! A minha tia, a irmã do meu pai, ela deixou pra nós, pras minhas irmãs, a parte dela na herança da minha vó. Porque a minha prima era professora e ela ajudou!
Deby: - Como assim, ela te deixou a herança?
Gi: - É porque os filhos já estão bem. Então como a minha mãe morreu e o pai... Ela deixou a herança pra nós. E essa semana terminou o inventário. Eu rezo pra ela viver bastante, porque a minha mãe morreu e ela é quem ajuda todo mundo. Mas ela é muito doente, então eu rezo pra ela ter bastante saúde, porque o meu pai não fica doente... Eu vou dizer uma coisa pra vocês. Fazia tempo em que eu não me divertia tanto. Tomei três caipiras. Eu tô bêbada mas eu tô lúcida. Eu rezo. Rezo pra minha tia ter bastante saúde, porque o meu pai não fica doente...

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Sexta-feira

Ficava parada, tentando entender por qual razão o dia amanheceu tão cinza.
Procurava lembrar as vezes em que o coração bateu acelerado, encantado por tanta delicadeza.
Insistia em retornar, à vida, ao amor, à tranquilidade, à certeza.
Mas já fazia um bom tempo que não tinha certeza de nada...
A voz lhe dizia, mas os sinais significavam o contrário.
Não tinha mais 20 anos, e toda aquela beleza da juventude, e toda a força de alguém que ainda tem muito pra viver, dando pouca importância pra dor.
E como lhe causava dor, aquilo tudo.
Momentos felizes, lembranças que não conseguiam ser apagadas.
Sentia-se enganada, e todos os dias, convivia ao lado dos fantasmas.
Virou uma louca descrente e sozinha, acompanhada dos fantasmas.
Apertava o travesseiro, mordia, dava socos na cama.
No sono, gritava!
E enquanto observava o mundo, cheio de esperança, lutando e lutando e lutando, não conseguia sair do lugar...
Esquecer, recomeçar!

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Vazio


Existem dias em que a gente não consegue nem ao menos sentir...
Não sei por qual razão essa ausência faz o papel ganhar contornos.
O céu azul não diz nada; a brisa, torna-se um vento forte; o mar calmo, ressaca.
Ainda quando tudo isso se confunde, é possível sentir.
Ainda que o azul esteja ali, e a brisa e o mar, mesmo que vistos de maneira disforme,
existe um sentir.
E quando tudo isso não é percebido?
Esvaziamento...
Confusão!
O choro não é suficiente, porque nem mesmo conseguimos explicá-lo.
As linhas preenchidas do papel, não dizem nada e nada.
E os desejos vão desaparecendo.
Sintra fica cada vez mais longe, e Évora, e Coimbra.
O longo prazo cansa, e o apartamento pequeno vai ficando cada vez maior, sem vida.
Não importa o quanto aquele gato de pêlo preto se deite ao chão, fazendo graça...
Sintra está longe, e Évora, e Coimbra, e aquele outro ser de pêlo preto, junto com seu dono...

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Sentir

Um gosto retorna à boca, a pele encontra a mão.
Saberia descrever todos os contornos,
E nem mesmo a tempestade faria desaparecer os cheiros.
Se os olhos são o mel, o sorriso é o dilúvio,
Leva pro outro lado do mundo quantidades de mar.
E num mergulho profundo, desliza ao lado dos cavalos marinhos,
Tão coloridos e fortes quanto aquilo tudo que lhe traz vida.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Além das grades


Às vezes a gente se sente numa caixa de ferro, com grades, pra poder ver a rua. Com grades pra também sentir vontade... O mundo está lá fora, mas a grade deixa bem evidente o quanto será difícil sair. A caixa não tem porta, e não conseguimos saber ao menos como fomos colocados lá dentro. Só queremos sair, agarrar as possibilidades que o mundo oferece. O quanto de força teremos pra arrebentar a caixa, não sabemos. A sensação é de que nada será suficiente, e o espaço, fica cada vez mais restrito. Algo incompreensível, como um zoológico, onde os Guepardos ficam à mercê de alheios. Incapazes de fazerem o que sabem com tanta beleza. Satisfazerem sua fome depois de uma suntuosa corrida nas savanas onde um dia puderam ter vida.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Anjos

Fotografia do filme Asas do Desejo
O quarto verde ilumina o escuro. Queria conseguir escrever algo sobre tudo. Agora, o que é tudo se desfaz! Um anjo foi embora e o outro ficou sem conseguir dar proteção. Esqueceram de dizer que até os anjos se ferem, perdem as penas das asas.
Quisera ter nascido com um par delas. Acompanharia o percurso que levou um dos anjos para tão longe. E voltaria veloz! Carregaria o outro que ficou sem as penas das asas que o faziam voar.



terça-feira, 31 de março de 2009

Dona ?


Não tinha bem clareado o dia e as dores iniciaram.
“Puta Merda”. Lá vou eu de novo!
Na sala de espera da emergência, apenas uma senhora aguardava.
Que bom! Pensei eu. Vai ser rápido!
Mas aí veio a triagem e mais uma vez a espera.
- Minha filha. Tu vais também no pronto-socorro? Perguntou a senhora que aguardava.
- Vou sim. Estou esperando ser atendida.
- Eu também, respondeu a senhora. - Essa tristeza tem dado gastura, secado a boca, não aguento mais!!! É a depressão, sabe? Já estou há um bom tempo assim...
Respondi àquela mulher de cabelos curtos, ruivos e de pele já enrugada em virtude da idade:
- É. Depressão é ruim mesmo. Minha mãe tem de vez em quando.
- E tu, o que estás sentido? Perguntou a mulher.
- Tô com uma dor no lado direito da barriga. Já faz uns dias e não aguento mais.
- Tadinha! Disse ela. - Tão nova e sozinha! E continuou...
- Tu sabes que eu também prefiro não incomodar ninguém? Meus filhos estão em casa! A minha filha, coitada, numa tristeza que só desde a morte do meu neto. Foi morto com quinze facadas lá no Sambaqui. Ontem prenderam os bandidos! Já faz um ano. Depois disso, a minha filha nunca mais prestou! A cidade tá mesmo violenta!
- Dona ?, chamou o médico. Então a mulher desapareceu no corredor. À minha frente, apenas a recepcionista e um aparelho de TV gigante, grudado na parede. Fiquei pensando nos programas que passariam durante o dia. Se eles realmente conseguiriam distrair a todos, no meio de tanta espera.
Não demorou muito e veio a doninha, triste, cambaleando, pedindo ajuda à recepcionista para sair dali, pegar o ônibus e ir pra casa.
Então ela me olhou, chegou bem perto e disse:
- Tu és tão linda! Fica com Deus, Débora! Tudo vai dar certo!
Foi aí que dei o primeiro riso do dia. Foi aí que percebi que nem ao menos havia prestado atenção ao seu nome. Mas ela sabia o meu. Ouviu enquanto eu fazia a ficha de entrada e não esqueceu!

É. A porta se fechou e lá foi ela...
Será que seu problema havia sido resolvido? Fiquei pensando...
- Dona ? Desculpe não ter lhe dito. A senhora também é linda! Tudo vai dar certo!

domingo, 29 de março de 2009

Em cena

E lá estava novamente tentando acertar o rumo. Um dia uma amiga lhe falou que às vezes não percebemos quando algo se perde. Enquanto isso, a coisa fica ali, meio de lado, espreitando o momento certo de entrar em cena. Nesse "meio tempo", fazemos um pouco de tudo, e o que é tudo acaba sendo posto de lado, deixando de ser... Vai se desgastando, virando pó, até desaparecer aos olhos, quase por completo, e então o palco fica vazio e até a cena deixa de ser importante à história. É mesmo! Pode ser que a coisa não seja fundamental, insubstituível pro conto. Ainda assim, ela tem vida... Desgastada, transformada em pó, é carregada pelo vento. Em alguns momentos, segue em linha reta. E é certo que não repousa. Acaba retornando com os fortes sopros da ventania. No ar, flutua em círculos. Não é matéria consistente pra alcançar o chão. E assim, o vento a leva cada vez mais a lugares não desejados. Ela tenta alcançar a história, se jogar ao palco onde ocuparia a cena. Quer ser agarrada, tomada como parte importante pelos seus atores. Mas enquanto não consegue, continua a voar, esperando ganhar solidez e repousar num outro palco onde não se transforme em poeira.

Sidônio e Deolinda

- De onde tu és? - perguntou Deolinda.
- Sou da Guarda.
Ingênua malícia no olhar, ela sussurrou no ouvido de Sidônio Rosa:
- Tu és o meu anjo-da-guarda.
O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava e ela se encostou nele. O português viu as suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. Quando deram conta, estavam enleados, sem saber que parte pertencia a um e a outro. A Praça do Rossio, em Lisboa, ficou, de repente, despovoada. Um homem e uma mulher trocavam beijos e o seu amor desalojava a cidade inteira.
- Tens medo de fazer amor comigo?
- Tenho - respondeu ele.
- Por eu ser preta?
- Tu não és preta.
-Aqui, sou.
- Não, não é por seres preta que eu tenho medo.
- Tens medo que eu esteja doente...
- Sei prevenir-me.
- É porquê, então?
- Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.
Deolinda franziu o sobrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se a ele. Sidônio não mais regressaria desse abraço.

Venenos de Deus, Remédios do Diabo, Mia Couto

quarta-feira, 25 de março de 2009

O dia valeu!

Sentia-se feliz, apesar de...
Aquela estrada era o caos, e a cidade mais ainda.
Só conseguia ver o cinza, e além dele, os buracos ou bolas de asfalto formadas pelo descuido.
Mas a pouca gente desperta pelo interesse valeu o dia.
Além disso, a barriga crescendo e crescendo e os chutes da vida que não era dela.
Imaginou-se carregando uma, chegou a se entristecer por não ter conseguido.
Quantos meses esperou, e novamente o ventre não foi preenchido.
Mas o coração estava ali, batendo e batendo.
Gargalhou com a lembrança pelo aniversário.
Não sabia que o dia quatorze de março tinha tanta história.
Nem mesmo cogitava que para alguém ele seria importante.
Surpreendeu-se, chorou de tanto sorrir.
E olha que a lembrança chegou atrasada por um problema técnico.
Tudo bem, não importava!
Foi de forma sublime lembrada.
Mais ainda, viu o homem e viu o cão.
Dormiria com aquela lembrança gostosa.
O cão, a abanar o rabo longo e peludo.
O homem, a fazer graça, ocupando de longe o espaço que é só seu.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Esquecimento do mundo


John Evertt Millais, Ofélia

Não conseguia dormir. Já passava da uma da manhã e o peito não dava trégua. Que raio de amor é esse que dilacera? Pensava ela. Estava até mesmo cansada de escrever em terceira pessoa. Vivia com medo de se sentir fraca, impotente, resignada às coisas, como sua mãe fazia. Sentia vontade de gritar, mandar à merda, rasgar a pele que revestia o corpo. Nem mesmo o ar conseguia chegar aos pulmões. Tinha o tal do “bolo” no estômago. Estava cansada do “tudo bem”. Talvez tivesse mesmo de passar pelo “luto” do amor, e enterrar de vez o que havia ficado. Não entendia. Já não era a primeira vez que havia levado uma rasteira. E mesmo depois da rasteira continuou a dizer “tudo bem”.
Queria ser ouvida, queria encostar a cabeça, queria um arroubo de paixão, queria um ninho. Estava na casa do amigo, mas a vontade era de sumir. Ainda bem que não estava no apartamento porque lá a janela era alta demais. Tirando isso, sua vontade era de pegar a estrada e enfrentar a madrugada. Hummm, quantos perigos e possibilidades... É! Era melhor ficar por ali e esperar o dia clarear.
Mas que raio de mulher é essa sem coragem? Sai daí, vai embora e some de vez! Ela sabia que não podia voltar pra casa. Ainda bem que o instinto materno falava mais alto que os destrutivos. Mas tava mesmo com vontade... Vontade de voltar pra casa! E se voltasse, os negros estariam deitados sobre seu ventre e não a deixariam. Arranhariam a porta pra estar ao seu lado, recolheriam todas as roupas do varal pra chamar a atenção, não poupariam miados para dizer o tamanho de sua importância. É! Ela precisaria mesmo do esquecimento do mundo. Tomou um Dramin pra dormir, mas a vida continuava rodando...

domingo, 15 de março de 2009

Dia do meio

Foi acordada com o sol, o dia estava lindo, sem vento, e o mar bem liso. Ensaiou cair na água como fazia seu companheiro Mergulhão, mas a água não teve o mesmo gosto, não conseguiu alimentar-lhe na ausência e nem encher sua boca de sal.
O domingo estava mesmo parecendo um dia do meio, daqueles que provocam rachaduras que se partem. Pensava sobre qual rumo tomaria, mas estava presa, trancada, acorrentada ao abismo.
Dia estranho, mesmo. As coisas simples tinham se perdido. O colchão parecia desabitado, largado no quarto já quase vazio. Queria colocar um vestido, pintar os olhos, colorir sua boca com batom, mas o pincel estava longe, foi levado junto com as tintas que davam à sua vida tanta cor.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Luz


Chagall, Lovers in moonlight
A ausência arde,
As palavras aproximam,
A água salgada, lava a alma,
Mas os pés descalços e sozinhos, sentem-se feridos.

O destino é incerto,
E a certeza é o amor,
Desejo de encontro,
Saudade de suspiro.

Da janela, a lua,
Lua que faz iluminar o quarto,
Espera de um embalo,
Anseio por sonos mais tranquilos.

A luz foi ligada,
A casa arrumada,
O Negro deu ternura,
E tão longe,
Vê-se o brilho daquele que é vida.

terça-feira, 10 de março de 2009

Desejos intangíveis

A distância foi ficando cada vez maior...
O ponto na estrada desapareceu.
Junto com ele, o ser amado. Seres!
Não conseguiu aproveitar os últimos instantes,
estava tão cansada que adormeceu.
Ao fundo do quarto, os sons ainda são ouvidos,
e o abraço, o braço.
As horas tinham passado. O dia chegou ao fim antes mesmo de iniciar.
Quantos pensamentos.
Estava perdida.
Não conseguia ao menos empacotar os livros.
Não tinha vontade de colocar o lençol no colchão onde o cheiro ainda se fazia presente.
Queria mesmo poder gritar, mas a voz não saía.
Parecia que o chão se abria novamente.
E continuava parada, sem forças.
Amava tanto aquele ser, seres!
Desejava tanto compartilhar de suas vidas...
Mas ficaria ao longe, a sonhar desejos intangíveis.

domingo, 8 de março de 2009

Nó na garganta

Mais um dia se passou e ela não desejou sair.
Queria ficar ali, durante dias e noites.
Mais dias, mais noites!
Aquele suor todo escorrido a deixou com um novo nó na garganta.
Mais um nó na garganta!
E quantos nós ainda teria de desatar?
Ela não sabia...
Desejava ficar ali pra sempre, aderida.
Teve de dar ré, deixando aquele grande negro a uivar,
deixando aquele grande homem a voar.
Sentiu seus lábios macios, ainda quentes, guardados na memória.
O amanhã viria, e o depois, e o depois.
Tinha de abrir as portas do guarda-roupas.
Esvaziar o que já estava cheio, preenchido por tanta coisa.
Ela sabia que o coração também ficaria vazio,
E assim como o amanhã, o depois, e o depois...
No futuro, teria de encher um outro guarda-roupas, assim como o coração.
Queria poder enchê-los com as mesmas coisas.
Mas de agora em diante não podia ter certeza.
Talvez elas fossem substituídas, talvez se perdessem e só a recordação pudesse dar conta de que não desaparecessem de vez.
Mas o amanhã viria, assim como o depois, e o depois...

sábado, 7 de março de 2009

Horas


Um contar de horas...
Chegada que não se espera.
Últimos dias de pele, toque e cheiros.
A mão escorrega, percorre caminhos sensíveis.
A língua afaga, deixa na boca o gosto do calor...
O corpo não pesa, cola!
É sentido até mesmo quando ausente.
As cochas deslizam entre movimentos,
ensaiam novas formas, suspiram, entrelaçam...
Quer mais, embora não possa!
Desiste, mas retorna.
E entre o prazer vivido, vão passando as horas...

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Querer

Estava mesmo difícil construir castelos. O delírio não conseguia nem ao menos imaginar recantos. A estrada comprida permitia possíveis sonhos, mas... O pé na areia da praia, a porta da sacada aberta para a grama, os negros de olhos verdes à beira da janela não davam brilho ao devaneio. Trabalho, sala de aula, companheiro amigo, vinho. Queria acender mais um cigarro, embora não pudesse. Até o veneno que acompanhava as lágrimas deixou de estar presente. Enfiaria a cabeça num buraco, se conseguisse. Mas a chuva que caiu naquela cidade enfadonha conseguiu até mesmo escondê-los. Pensou no que queria, e se queria! Não podia querer, porque os desejos já não eram os mesmos. Quanta energia gasta na tentativa de construir os castelos, e nem mesmo uma casa de madeira conseguiu erguer. Talvez se a casa de madeira tivesse sido erguida fosse mais fácil deixar tudo pra trás. O fogo não foi suficiente pra incendiar as vigas que deram sustentação aos sonhos. Mas a água jorrada pelos olhos acabou destruindo tudo; limpou a terra das cinzas produzidas pelas chamas, levando tudo aquilo que ainda insistia em ficar de pé!

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Toque-me! Sou teu!


Como é possível uma cidade cinza e repleta de concreto ainda expelir ternura?
Como é possível tanta gente, no vai e vem do transporte coletivo lotado, expressar sua alegria?
E a natureza, como pode, conseguir viver enclausurada nos espaços reduzidos dos jardins envoltos de cimento?
Um piano à entrada da Estação da Luz pedindo para ser tocado...
Poemas declamados vivos, acompanhados de luzes e sombras...
Gentilezas manifestas no exercício do trabalho...
Criação, vontade, esperança, desespero...
Jovens que desfilam a alegria do carnaval!
Negros que não se intimidam com a discriminação!
Velhos, que com as mãos quase desfalecidas, arriscam tocar as teclas do piano, compondo novos acordes em suas vidas...
... Novos acordes a outras vidas!
O mar não basta! A tranquilidade desejada se esvai!
Fica o som ensurdecedor do metrô, a acompanhar aqueles rostos cansados, desesperançosos...
Mas fica também a imagem das mãos que se permitiram sonhar ao toque do piano, e a sensação dos olhos que se permitiram enxergar no som, novos sonhos...

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Forte negro



Hoje ela sentiu saudade,
Saudade de um tempo que não viveu,
Ao lado daqueles olhos negros,
Desejou o seu calor.


Pequeno grande amigo,
Companheiro que aqueceu seus pés,
Forte negro, imponente,
Animal encantador.


Pisque os olhos, mais uma vez, querido?
Não deixe de piscar pra mim.
Tente enxergar que mesmo longe,
Teus olhos negros me farão sorrir...

Bocas roxas

Bocas roxas de vinho
Testas brancas sob rosas
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa

Tal seja, (...) o quadro
Em que fiquemos, mudos
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses

Antes isto que a vida
Como os homens a vivem
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas

Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.

(Ricardo Reis)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Parede da pele


Perguntava se aquilo não seria um sonho. Ansiava despertar a fim de sentir o coração bater mais manso. Era tudo tão real que insistia em acordar. E quando acordou, voltou a sonhar. Agora, a tinta descascada caía mais forte do teto. Era tanta tinta que dava pra salpicar o corpo de pó. Não estava dormindo, mas não estava porque não conseguia. O pintor ia chegar bem cedo pra tapar o buraco que a tinta descascada fazia aumentar. Precisava ficar alerta!


Quanta gente chegou, gente que nem conhecia. Queriam ajudar a consertar o teto, botar ordem na casa, mostrar que por trás da janela suja de poeira havia uma paisagem. Queriam esconder as rachaduras na parede da pele, marcada, afogada, já sem cor. Era tudo tão real que insistia em acordar. Mas quando acordou, quis fugir do sonho para o qual retornou...

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Mais nada!

Dia diferente, este.
Porque não havia sido esperado!
Desejo refletido, e mais nada...
Estranha sensação de ter só o corpo, transpirado, pesado.
Não queria que fosse assim.

Apenas desejava ser amada.
E o prazer do toque, do encontro, da língua nos lábios.
Foi desejo refletido. Mais nada!


sábado, 24 de janeiro de 2009

Na sua estante

Te vejo errando e isso não é pecado
Exceto quando faz outra pessoa sangrar
Te vejo sonhando e isso dá medo
Perdido num mundo que não dá pra entrar

Você está saindo da minha vida
E parece que vai demorar
Se não souber voltar ao menos mande notícias
Cê acha que eu sou louca
Mas tudo vai se encaixar

Tô aproveitando cada segundo
Antes que isso aqui vire uma tragédia

E não adianta nem me procurar
Em outros timbres, outros risos
Eu estava aqui o tempo todo
Só você não viu

Você tá sempre indo e vindo, tudo bem
Dessa vez eu já vesti minha armadura
E mesmo que nada funcione
Eu estarei de pé, de queixo erguido

Depois você me vê vermelha e acha graça
Mas eu não ficaria bem na sua estante
Tô aproveitando cada segundo
Antes que isso aqui vire uma tragédia

E não adianta nem me procurar
Em outros timbres, outros risos
Eu estava aqui o tempo todo
Só você não viu

Só por hoje não quero mais te ver
Só por hoje não vou tomar a minha dose de você
Cansei de chorar feridas que não se fecham, não seguram
E essa abstinência uma hora vai passar...

Pitty

Negação do amor


O dia amanheceu diferente...
Da janela, uma pequena fresta de luminosidade.
Hora de levantar, acordar pro mundo.
Sentia-se anestesiada. Alguma coisa havia mudado.
Sensação igual a essa já tinha vivido há tempo, muito tempo.
Teve de renunciar ao amor para reviver.
Mas agora algo havia mudado.
Quando da primeira vez ouviu que o amor acabara, não acreditou.
Teve força para resistir e um fio de esperança para tentar.
Quando da segunda vez ouviu que o amor acabara, decidiu.
O amor de fato acabara.
Do outro lado da cidade, o talvez algum dia deixou de fazer sentido...
O amor de fato acabara.
Então levantou, organizou suas coisas, tomou café, fez companhia aos gatos.
A água do chuveiro fez escorrer o peso que o corpo carregara.
Gotas e gotas de restos foram escorrendo pela pele, perdendo-se na poça acumulada.
Já não conseguia chorar. A tristeza tinha passado...
Então respirou fundo, olhou pela janela, sentiu-se plena, cheia de vontade, desejos, sonhos.
Aquele amor de fato acabara.
Conseguiu suportar a negação do primeiro amor.
Conseguiu aceitar a negação do segundo amor.
Conseguiu rejeitar a negação do terceiro amor, ou a possibilidade.
O talvez algum dia também acabara.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Mergulhão


Não imaginava o quanto sofreria ao ter de refazer as malas.
Não sabia o quanto tinha errado, até o momento exato de perceber seus erros.
Queria poder evitá-los, de forma que as malas não precisassem ser refeitas.
Mas não evitou, e agora, era tempo de partir.
Chegou a olhar para trás, tentando encontrar um céu azul na paisagem.
O céu azul era cinza, cheio de névoa.
Ao longe, um pássaro que precisava voar, já que há tanto tempo estava aprisionado.
Queria ter asas para voar junto com ele, e até tinha.
Mas enquanto ele era um Mergulhão, acostumado ao contato com mar,
ela era um filhote de ave na busca por sua identidade,
ainda aprendendo a nadar nas poças de água que a chuva deixava na estrada.
Experenciou seus primeiros movimentos na água, ao lado dele.
Teria, agora, de experenciá-los sozinha,
aprender a viver, a gostar de viver, sem aquele grande pássaro que foi sua companhia. Não sonhava em ser igual ao Mergulhão, mas alçar grandes vôos e cair na água do mar em presença dos peixes, como seu companheiro faria.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Ausência de chão


D. Mãos do Campeche, 2008

Partiu! Mais uma vez partiu, e preferiu deixar a tentar.
Talvez porque não pudesse, de fato, dar as repostas.
Talvez porque que não quisesse mais.
O chão novamente foi saindo de seus pés, e deixou um buraco enorme.
Foi difícil, no passado, tapar o mesmo buraco.
E agora faltava a terra que a tempestade carregou.
Teria tentado não deixar o buraco abrir, mas isso se não tivesse percebido os sinais,
ou quem sabe a ausência deles.
E durante toda a tarde ficou pensando no seu fracasso, na sua incapacidade de preencher aquele coração por quem se apaixonara, por quem sentira amor.
Mas até mesmo o amor quer ser amado, não se sustenta na solidão, não consegue carregar nas costas o peso que as palavras não ditas podem ter.
E o conforto chega junto com a necessidade de destruir seus monstros, já que o pedido de ajuda não pôde ser atendido.
É preciso tirar o nó das costas, e talvez mais ainda da garganta.
É preciso esfacelar o monstro em mil pedaços de maneira que ele não mais possa se recompor.
Mas isso terá de ser feito na ausência das mãos, já que não foi capaz de fazê-las resistirem à dor que provocou sem querer.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Que tempo é esse?

Que tempo é esse que passa sem ser possível deixar?
Quantos projetos foram pensados e não saíram das idéias!
Não foi assim que os desejos se fizeram nas noites!
Há um grito sem som, há um choro sem lágrimas, há uma ferida sem dor.
Porque o vazio permite o nada, a ansiedade teme a espera, e os momentos de agora não são suficientes para esquecer o futuro.
Ele anda à frente, sem olhar para trás.
No caminho, pedras, barro, verde que corta e sangra.
A presença é ausente; o toque, imperceptível.
Queria ter a certeza de que tudo não passou de impressão.
Queria não ter visto as imagens...
Ele se vai e deixa quem fica.
Não se esforça para não haver um ficar. Some no meio da mata, deixando o som de seus pés a andar, a andar.
Há muito sonhou que corria atrás, descalça, sentindo as pedras cortando-lhe a pele.
Hoje, continua correndo, mas a distância parece maior...
Não consegue alcançar a mão, não consegue sentir o cheiro.
E a presença parece apenas um protelar da ausência...
Quis construir uma casa, uma vida, uma família.
Quis ganhar um abrigo, mas também abrigar.
Não conseguiu, tem certeza.
E a história termina sem ter chegado ao fim.