quinta-feira, 30 de julho de 2020

Por sobre a cidade, à espera do amor

Marc Chagall - Over the Town (1918)

E na Era do asilo, encontra-se mais próxima de si, com seus medos e desejos e pensamentos soltos a voar.
Transita entre o passado e o presente, entre o que pode e o que não pode vir a acontecer.  
Retorna pelos ares aos sentidos sem qualquer sentido, buscando compreensão no que ainda não compreendeu.
O que é o amor? Uma mistura de gozo e dor que se depara com o inexplicável.
Às vezes só consegue se sentir cansada de continuar buscando, acreditando, sonhando com o que talvez não possa acontecer.
E na luta pelo alcance da força, sente a fraqueza nas sombras, reflexo daquilo que é e que insiste em não ser.
Tola mulher madura, que espera e procura alguém para amar.
Tola mulher menina, que sonha em ser um dia, amada como nunca foi.
E ela, depois disso, continua a se perguntar por qual razão precisaria de um amor.
Talvez não tenha ainda, conseguido com a mesma alegria, bastar-se no dia a dia, sem a presença de mais alguém.
Então continua perdida, ama sem ser correspondida, um fantasma que nunca vem.
E da janela da sala, ela observa a cidade, sem cansar de esperar. 

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Diário da saudade: um ano sem meu pai!



Hoje minhas palavras vão para este homem, cuja trajetória de vida nos trouxe imensas surpresas!
Hoje meu orgulho é deste homem, que partiu há um ano e deixou como legado a certeza de que podemos nos transformar para melhor!
Das dificuldades enfrentadas por um menino criado na periferia de Campos de Goytacazes, teria se tornado, em fase adulta, num militar defensor da disciplina.
Das experiências da vida no despertar da velhice, teria deixado a disciplina de lado, tornando-se pessoa mais compreensiva e doce, sem deixar de lado certa acidez.
Qual foi minha surpresa ao ver meu pai cuidar tão bem de minha mãe quando foi a vez de ela partir!
Qual foi minha surpresa ao ouvir meu pai dizer que o amor independe de opção sexual e que é um direito de todas as pessoas!
Qual foi minha surpresa ao presenciar meu pai ultrapassar as barreiras de muitos preconceitos carregados no interior de si!
A imagem abaixo é deste homem, meu pai. Foi fotografada assim que comprou um computador para aprender um pouco mais. Tirou sem querer, ao manusear o equipamento sem muito saber o que fazer! Encontrei por acaso, ao visitar os arquivos deixados na máquina. Nessa mesma máquina, ele iria, para mais de seus oitenta anos, aprender o francês e novamente surpreender.
Sinto sua falta, meu velho!  Continue a aparecer nos meus sonhos dirigindo um automóvel qualquer ao lado da mãe!

quarta-feira, 11 de março de 2020

Das coisas que meu pai anda fazendo...

E acenou com a dianteira do carro, subindo a rampa da garagem e estacionando rente à janela do rancho.
Não era um rancho rural ou qualquer coisa do tipo. Mais parecia uma casinhola de madeira e havia sido construída atrás da casa, feita pra servir de cozinha, já que a da casa propriamente dita tinha virado sala de costura de tão pequena que era. 
Dessa vez o carro era velho, de um azul claro que até ardia os olhos. E pequeno. No entanto, isso era o que menos importava. Ele desceu altivo do carro e com a cabeça erguida fez questão de frisar: - Olha como eu posso ficar reto! Veja como eu posso olhar pra frente com a cabeça erguida!
Vestido com um conjunto "safari" na cor caqui feito por minha mãe há mais de 30 anos, ele parecia um homem de seus 50 anos, com todo o vigor de alguém dessa idade. Em pé, diante de meus olhos, explicava que o médico havia lhe dado dicas de como ficar assim: - E só esticar bem o corpo e exercitar a cervical com uma toalha enrolada atrás do pescoço. Você segura as pontas da toalha com ambas as mãos e força levemente a base da cervical para trás. Comecei hoje mesmo e não é que funcionou!
Ele estava realmente feliz. Há tempos vivia acabrunhado com a inclinação da cabeça. Já não podia olhar pra frente e o desvio do pescoço também havia lhe prejudicado a fala, a deglutição, a segurança pra se locomover, ver o que estava diante de seus olhos que não fosse os pés e o chão. 
Meses atrás ele já tinha pregado uma surpresa dessas. Saiu com meu irmão pra ir ao médico; exames de rotina. Voltou dirigindo uma caminhonete laranja dos anos 50. Ela era linda, enorme, com carroceria dupla e estribo. Era perfeita. O estribo rebaixado dava a ele mais facilidade pra embarcar no automóvel. Confesso que achei estranho ver meu pai chegando ao lado de minha mãe, com meu irmão sentado no banco de trás do carro. Perguntei como era possível aquela façanha. Pelo que lembrava, fazia mais de 40 anos que ele não dirigia e do nada aparecia assim, guiando. Meu irmão não soube explicar. Apenas disse que, ao sair do consultório pediu que fosse levado a uma concessionária. Queria comprar um carro, e não podia ser qualquer um. Desejava o maior, mais potente e melhor. Disse que andava cansado de depender dos outros e que agora seria livre novamente.
Em pé, diante de mim com a cabeça erguida, meu pai parecia ter mais de um metro e oitenta de altura. Já não era mais aquele senhor franzino de 89 anos que há tempos não saía sozinho de casa. Era viçoso, tinha a pele morena e os cabelos grisalhos. O rosto era quadrado, o queixo altivo e o sorriso de lado deixava claro que ele estava pronto pra viver a vida. Já tinha, ele, cumprido a missão de ser pai, cuidando dos filhos mesmo depois de serem capazes de cuidar de si próprios. Certamente, realizou alguns sonhos. E sem dúvida, deixou de realizar outros mais. 
E ele chegava de repente dirigindo outro carro. Por fim, um Cadillac marrom, velho, carcomido pelo tempo, mas enorme e cheio de potência. Disse depois, minha irmã, que foi num desses que ele aprendeu a dirigir.
Era umas oito horas da manhã. Acordei tonta, com as paredes rodando como vinha acontecendo quase todos os dias desde que as vertigens reiniciaram. Fui até a cozinha, peguei um copo d'água e ingeri o comprimido esperando que logo pudesse ver a vida em equilíbrio. Sentei no sofá e peguei o telefone celular pra ver se haviam mensagens ou alguma notificação nas redes sociais. Sorri. Lá estava a foto dele, meu velho com a cabeça caída pra frente e seu sorriso maroto de lado. Lembrava, o facebook, de seu aniversário de 90 anos naquele 6 de março de 2020. Resolvi ligar pra minha irmã, mas o telefone só chamou. Tentei novamente, mas ela não atendeu. Decidi mandar uma mensagem, porque a vontade era tanta de falar com ela que eu não consegui esperar.
Mana, tudo bem? Hoje eu sonhei com o pai. Ele estava vestido com aquele safari caqui que a mãe fez pra ele, lembra? Tava dirigindo novamente, igualzinho ao último sonho. Primeiro um Fiat 147 azul. Depois, um Cadillac marrom que mais parecia ter saído do ferro-velho. Mas o legal é que ele tava super feliz, principalmente porque a cabeça não andava mais caída, a corcunda tinha desaparecido e agora ele podia tomar as rédeas da vida. Olha que incrível, sonhar com ele no dia em que faria 90 anos e depois de 9 meses que partiu! Liga pra mim, quando puder!

quinta-feira, 31 de maio de 2018

Try a little tenderness

O tempo passa e no vai e vem das horas, escorrem pelos dedos a água salgada dos olhos, ardentes ainda pelas surpresas que ela custava em acreditar. Não foi o amor perdido, a vida sobressaltada pelo final estúpido, a mudança repentinamente esperada. Foi a perda do amigo, do companheiro de uma vida que escorregadiamente deixou a memória de ambos pra trás. Ela queria esquecer, mas volta e meia o pânico a assombrava. Era como se não pudesse acreditar em mais nada. Queria se recuperar. Havia amado, construído uma história, bonita, intensa, difícil, entrecortada por tudo aquilo que pode marcar duas almas, do belo à feiura odiosa do ser. Volta e meia ela se pegava no pesadelo. Lembrava daquele antigo amor e amigo que lhe foi desleal. E a ternura, sentimento tão simplesmente perseguido, era substituída pela dor. 

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Quando o sono espalha

Dois passos e um, aquele toque de mãos.
Ficava a contemplar suas formas, beleza posta nos traços mais sutis.
Me perdia no encanto da silhueta, com seu antebraço na direção. 
E o sorriso de lado, meio travesso e marcado, fazia com que eu mordesse os lábios, com vontade de rir. 
Que forças nos aproximaram assim? Por qual razão? 
Era possível encontrar uma alma tão ligada à vida que me fizesse sentir o amor? 
O amor... 
Calmo, bruto, desejado. 
Depois de uma noite, bailado, quando corpos quaisquer não aguentariam mais... 
Mas a vontade era forte, e no dizer de seus lábios: “o sono espalha”! 
E espalhou! Pela cama e os lençóis.

PS. 
Covinhas (s.f)

É quando o universo cava no seu rosto um espaço a mais para você sorrir. É a alegria fazendo morada em você. É a tatuagem mais bonita do seu corpo (para mim, suas linhas de expressão). São dois pontos que eu faço questão de ligar com uma piada boba ou uma gracinha idiota. Não me culpe por querer te fazer sorrir, a culpa é das covinhas.

São as duas aspas que fazem, do seu sorriso, poesia.

João Doerderlein (@akapoeta), em O livro dos ressignificados.