quarta-feira, 21 de maio de 2008

Um deserto

Calahari, Foto Alessandra Rosa, 2007
Tinha o nome de um deserto.
Mas como um deserto podia apresentar tanta beleza?

Ainda é possível lembrar quando foi vista pela primeira vez.
Estava cheia de fome, cheia de sede, cheia de vida,
e ainda carregava consigo uma outra vida.
Presente.
Conseguiu driblar a ventania, conseguiu amolecer o cão,
conseguiu um espaço na cama, hoje com menos aconchego,
já que nela há ausência.
Era livre, era uma imensidão.
E tal como um deserto, com oásis.
Miragem que mirava.
No olhar, uma floresta cheia de encantos.
Em vida, uma felina.
O pêlo branco, macio, ainda pode ser sentido.
Os movimentos, imprevisíveis, eram dança.
E quando dançava, podia falar...
Aprendeu e ensinou.
Foi gata, de Borralheira à Cinderela.
E mesmo quando Borralheira, extremamente bela.
Um deserto, Calahari.
A “grande sede” de viver, sentir, brincar.
A “grande sede” de ser o que foi e o que sempre será.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Notting Hill

Chagall, La Mariee
Achou que viveria em um conto de fadas.
Construiu um castelo de areia, mas esqueceu do quão era próximo da praia.
Viveu dentro dele, sem olhar para os lados.
Da torre, imaginou momentos maravilhosos, e continuou imaginando...
Não pôde compreender a fantasia criada em torno do conto.
Assim como também não pôde compreender o castelo ruindo com o sopro do vento, das ondas do mar.
Tentou construir outro castelo, agora mais distante das águas, da ventania.
Mas ele, às vezes, parecia tão frágil...
Queria mesmo poder construir outra coisa, talvez algo que a fizesse tão feliz que não desejasse viver em um conto de fadas.
Tinha vontade de ser mulher, ao contrário de uma menina perdida em seus medos.
Não sabia qual rumo tomar.
Era Alice, tendo de percorrer vários caminhos...
Era a Gata Borralheira, sentindo-se indesejada...
Era Anna Scott diante de William Thacker, apenas pedindo para ser amada.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Da janela

Ainda era madrugada quando olhou pela janela. Esperava o dia clarear, mas as luzes eram aquelas tremendamente opacas que por alguns anos enxergou naquela cidade erma. Sentia os sons ferozes das tantas figuras que por baixo daquela janela alta circulavam com freqüência, e das muitas que por ali passaram e agora já não passam mais.
Ansiava pelo dia amanhecer, ansiava acordar e ver o sol, que nem sempre aparecia, diante do peso que o estar ali representava. A água quente ajuda a tirar do corpo toda aquela sujeira, cheiro, desespero. E a felicidade aparece diante da possibilidade da partida. Rumo ao destino, ela caminha pela rua, na direção do que a levará ao aconchego. Barulho, velocidade, farol, espera...
Todos passam sem que percebam os que estão a sua volta. Nova janela, agora mais baixa. Dela, a imagem do corpo esfacelado que a cidade e os que nela habitam não permitiram chegar ao destino. Ela se vê, ela se reconhece, ela se sente e deixa de se sentir como mais uma das tantas figuras que por ali passaram e que não passarão mais...

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Crina

Autor indefinido
Sua crina era tão opaca que o vento forte mal podia fazer movimentar.
De que servia aquela crina, tão majestosamente emoldurada para protegê-lo da ação dos predadores? Ele estava ali, caído ao chão. Não podia correr por grandes vales e numa suntuosa dança encantar a fêmea com seus movimentos. Não tinha ao menos forças para um relincho, que naquele instante mais significava um grito de socorro.
Carregou por quantos anos, nas costas, aquele amontoado de ferro velho, plástico e papelão que seu dono encontrou pelas ruas?
Não sabia definir o tempo, era um cavalo, e como tal, outra espécie de ser vivo...
Cavalo, Homem, dois seres vivos diferentes. O primeiro, o cavalo, só, sujeito do meio em que foi criado, portanto, subserviente, exaurido, incapaz de refletir sobre o entorno de sua realidade, uma espécie de ser vivo viva, com necessidades e sentidos, vítima do especismo.
O segundo, o carroceiro, só, produto do meio em que foi criado, portanto, violento, insensível, incapaz de ver no cavalo uma espécie de ser vivo viva, com necessidades e sentidos. O homem e carroceiro, era também um especista.
Enquanto especista, fruto de uma noção de homem insana; razão sem fluidez; ausência de aprendizado. Enquanto homem, capaz de se metamorfosear?
O cavalo, caído, mal podia sustentar o peso do corpo.
Foi levado a um campo onde pôde descansar.
O carroceiro sumiu, é verdade, e o cavalo até conseguiu dar algumas trotadas pelo pasto. Teria, sua crina, brilho e leveza algum dia?
Continuava o cavalo no mundo do homem incapaz de se metamorfosear.