domingo, 28 de dezembro de 2014

Marias


Gustav Klimt, La Virgen, 1913

Ela se chamava Maria. Maria, Maria Madalena, Maria Mariquinha, Maria Mulher. E durante toda a sua vida assumiu seu papel de Maria, Maria Madalena, Maria Mariquinha, Maria Mulher.
Cuidou dos irmãos, um total de dezesseis; dezesseis os que viveram, porque foram alguns mais. Não chegou a ser criança, a Maria, pois já aos 7 teve de ser Maria Mulher. E essa foi a forma que encontrou para talvez brincar de casinha.
Conseguiu viver um pouco da juventude. Tinha posses, foi a bailes, cortejou, foi cortejada. Era, sem dúvida, uma rapariga bonita. Conseguiu conquistar o coração do moço mais formoso do vilarejo. Namorou, noivou, casou, a Maria virou mulher... Mãe, teve de cuidar das filhas. Esposa, teve de cuidar do amor.
Mas o amor lhe pregou peças, peças que só a Maria Madalena conseguiria explicar. Não tinha ainda 25 anos de idade quando foi separada do amor, separada das filhas. E durante muito tempo, sendo mãe e esposa, a Maria Madalena foi se tornando a Maria Mariquinha.
Passaram-se décadas e ela continuou cuidando de alguém. Ora dos primos, ora de outros. E mesmo distante do moço, que já não estava tão formoso assim, a Mariquinha tinha de ser, por vezes, novamente a Maria Mulher.
Viveu uns vinte anos nessa rotina, distante do moço já não mais formoso, cumprindo seu papel de mulher. Acho que ela esperava que ele partisse de vez, quem sabe para guardar na lembrança a imagem daquele que foi o seu grande amor.
Aos 49 ele morreu. Nessa época, as filhas que teve com o moço formoso já tinham lhe dado netos, e deles ela passou a cuidar, tornando-se, definitivamente, a Maria Mariquinha, agora também avó.
Não teve paciência em lidar com os pequenos, isso porque nunca pôde experenciar o gosto da infância. Crianças, os netos não compreendiam a razão de tanta rispidez. Para eles, ela era a Maria Mariquinha avó, chata vó.
Só quando bem velha, pôde sentir deles amor. Ela já não era mais tão bonita, embora cheia de vida. Tinha tanta vida que nada a fazia desistir. O corpo, já não mais formoso, apresentava curvas que lhe causavam dores ao caminhar. Mas ela insistia em usar batom, fazer as unhas, pintar seu cabelo ralo, esconder a falta dos dentes.
E o tempo passava... Ninguém mesmo podia acreditar que a Maria Mariquinha resistiria à idade avançando e avançando e avançando... Ninguém imaginava que ela assistiria à partida de suas duas únicas filhas e que se tornaria incapaz de cuidar de si mesma, precisando de alguém capaz de levá-la ao banheiro, dar-lhe comida, colocar-lhe na cama e dedicar um pouco de tempo e atenção, tal como fez durante anos e anos e anos...
Agora ela estava ali. Aos 96 anos ela estava ali, e pôde ver o surgir de quatro gerações que dela se aproximaram e foram encantadas pelo seu sorriso, que mesmo desdentado, trouxe à luz a beleza de suas Marias. É, ela estava ali e não mais ali. Sobraram lembranças, uma saudade imensa e a certeza de que há muito tempo ela tinha deixado de ser a "chata vó". 

Amo você vó, estarás sempre no meu coração
25/12/2014