domingo, 27 de abril de 2008

Tempos de calmaria

Queria ela só recordar dos momentos bons que passaram juntos. Das cartas que trocaram, da espera pelos encontros, dos sorrisos esboçados quando caminhavam pela cidade fria, do toque de seus corpos quando ainda se descobriam.
Ela tentava trazer à luz esses momentos compartilhados, e além desses, tantos outros que a memória lhe permitia recordar, insistia tentar recordar, talvez para fazê-la esquecer dos momentos que a fizeram deixar de sorrir, que os fizeram deixar de sorrir.
E nem foram tantos assim, esses momentos. Mas como permitir esquecê-los, quando foram eles que criaram as rachaduras do cristal? E era um lindo pote de cristal...
Ela já não era mais a mesma, os dois já não eram. Tentavam juntos, novamente, reconstruir suas vidas. De forma diferente daquela que haviam compartilhado, é claro, mas nem por isso menos feliz.
Cheia de empenho ela lutava contra os fantasmas, as imagens, as lembranças, os gemidos, o silêncio, a raiva. Tentava mesmo apaziguar o mar revolto. E até tinha, em seus segredos, um apoio. Eram eles que momentaneamente acalmavam o mar. E então quando o mar acalmava, ela deixava flutuar a razão.
Mas eram tempos difíceis, esses...
Calmaria, tormenta, calmaria, tormenta. Desejava a calmaria, mas a tormenta lhe derrubava. Caída, seus segredos apareciam, e neles tinha apoio para se levantar, talvez até vislumbrar na tormenta uma porção gigante de pequenez.
Então ela novamente olhava o cristal. Conseguia mesmo ver nele grande beleza. As rachaduras continuavam ali, serviam elas para deixar turvos os segredos escondidos no pote. Queria acreditar que as rachaduras sumiriam com o tempo, e assim como as rachaduras, os segredos.
Que lindo pote de cristal era aquele! Podia ver as linhas primorosamente desenhadas que o adornavam. Eram linhas tão admiráveis que os sinais de "imperfeição", se é que imperfeitos, não feriam a sua beleza. E da sacada, ela observava o mar em tempos de calmaria...