segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Repolho branco, couve manteiga e brócolis

A cidade de São Paulo e as suas surpresas...
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Era uma sexta-feira, supostamente último dia em que aconteceria o chamado Noitão do Cine Belas Artes, agora ameaçado em face de interesses comerciais que vislumbram no prédio onde há mais de cinquenta anos assiste-se a bons filmes, uma forma mais rentável de gerar lucros ao proprietário do prédio.
À entrada, um multidão de pessoas na fila para obtenção dos ingressos. Três filmes passados durante a madrugada, com intervalos pequenos para que todos pudessem ir ao banheiro, tomar um café para manter os olhos abertos, esticar o corpo...
Milhares de jovens: adolescentes, pessoas já maduras, gente de todos os gostos, mas com uma disposição afinada à apreciação dessa forma de arte.
Um senhor de idade entra na última sala de cinema em que os bilhetes não haviam sido totalmente vendidos.
De muletas embaixo dos braços, ele tentava descer as escadas vagarosamente...
Não saberia dizer a idade daquele senhor, mais fui ao seu encontro, oferecendo ajuda para encontrar um assento naquela sala lotada onde todos já estavam acomodados.
Sua caminhada vagarosa, permitiu um pequeno diálogo:
- O Senhor quer ajuda?
- Sim, faça o favor de segurar esta muleta, e esta sacola também...
- O Senhor aguarde um momento que eu vou tentar encontrar um assento.
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A sala estava mesmo lotada. Uns quatro lances de escada abaixo, um assento disponível.
- Encontrei, mas o Senhor terá de caminhar mais um pouco!
- Não há problema! Dizia ele, e unindo um frase a outra olhou nos meus olhos e disse:
- Você guarda o nome de três plantas que eu vou lhe dizer: repolho branco, couve manteiga e brócolis.
Então eu repeti:
- Sim, sim: repolho branco, couve manteiga e brócolis.
- Você tome o chá dessas plantas porque ele é bom pra o câncer do intestino. Uma pessoa por dia morre de câncer de intestino e foi comprovado que essas plantas previnem o seu aparecimento.
Então eu dei um sorriso e repeti:
- Repolho branco, couve manteiga e brócolis.
Tão próximo estava o assento. O senhor sentou-se, acomodou as muletas e eu perguntei se ele estava bem. Ele disse que sim, mas pediu que eu não esquecesse do nome das plantas, fazendo com que eu os repetisse.
Então eu perguntei o seu nome.
- É Milton, e o seu?
Depois de dizer-lhe o meu nome, só pude desejar-lhe um bom filme e voltar para o meu lugar
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Ao fim do primeiro filme saí do cinema para tomar uma água.
Preocupada com aquele Senhor, voltei à sala e o encontrei já à porta, indo em direção ao elevador.
- O Senhor quer ajuda?
- Não, obrigada. Vou pegar o elevador para tomar um café, porque senão tenho sono.
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O segundo filme já havia começado quando ele retornou, agora, com o bilheteiro o acompanhado de forma que chegasse seguro ao seu lugar.
E eu que pensava que ele iria embora, vencido pelo cansaço...
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No fim do segundo filme, outro intervalo. Pensei que agora ele iria ficar sentado, ou então resolveria ir embora. Que nada. Não demorou muito e ele se levantou do assento, tomando suas muletas e a sacola que carregava e subindo as escadas, sempre vagarosamente.
Um pouco depois o encontrei entrando no banheiro. Então pensei comigo que ele deveria estar cansado, que certamente iria embora dali.
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O terceiro filme começou. Ao contrário dos outros, era um lançamento daqueles que enchem os olhos da meninada. E a sala já estava escura quando novamente percebi aquele senhor tentando descer as escadas. Novamente fui ao seu encontro, ofereci ajuda, e o levei até o assento cujo lugar já estava reservado a ele.
Quando o deixei sentado, ele me pediu que no último intervalo eu lhe desse meu endereço para que pudesse enviar uma revista pra mim. Eu disse que sim, que certamente, e fui me sentar, neste momento, encantada por tanta força de vontade, por tanta vida.
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A última mostra acabou e nos dispersamos ao ponto de eu não conseguir deixar ao senhor meu endereço. Mas os dias se passaram e aquela figura não saía da minha cabeça...
Milton... Quem seria aquele senhor? Quanta história ele teria para contar?
E por qual razão ele teria dito a mim para decorar aqueles nomes da plantas?
Desejei ter aquela força de vontade... Fiquei a pensar por qual razão ninguém o acompanhava...
Fiquei encantada com a cidade de São Paulo e as muitas surpresas que ela nos reserva.
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Um senhor de muletas, só, no Noitão da Cine Belas Artes...
Quanda vida havia ali!
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Mas minha curiosidade foi tanta que na segunda-feira não resisti:
Fui à internet e procurei aquele senhor com os dados que eu tinha. O Google é ótimo pra essas coisas: Milton + Cine Belas Artes + Noitão + senhor de muletas. Afinal, não seria eu a única naquela multidão a ver tão primorosa paisagem da vida.
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E foi neste mesma segunda-feira que eu o encontrei. Um nome de destaque. Poeta e mais tantas outras coisas... Personagem singular de uma São Paulo também imensamente singular.