quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Querer

Estava mesmo difícil construir castelos. O delírio não conseguia nem ao menos imaginar recantos. A estrada comprida permitia possíveis sonhos, mas... O pé na areia da praia, a porta da sacada aberta para a grama, os negros de olhos verdes à beira da janela não davam brilho ao devaneio. Trabalho, sala de aula, companheiro amigo, vinho. Queria acender mais um cigarro, embora não pudesse. Até o veneno que acompanhava as lágrimas deixou de estar presente. Enfiaria a cabeça num buraco, se conseguisse. Mas a chuva que caiu naquela cidade enfadonha conseguiu até mesmo escondê-los. Pensou no que queria, e se queria! Não podia querer, porque os desejos já não eram os mesmos. Quanta energia gasta na tentativa de construir os castelos, e nem mesmo uma casa de madeira conseguiu erguer. Talvez se a casa de madeira tivesse sido erguida fosse mais fácil deixar tudo pra trás. O fogo não foi suficiente pra incendiar as vigas que deram sustentação aos sonhos. Mas a água jorrada pelos olhos acabou destruindo tudo; limpou a terra das cinzas produzidas pelas chamas, levando tudo aquilo que ainda insistia em ficar de pé!

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Toque-me! Sou teu!


Como é possível uma cidade cinza e repleta de concreto ainda expelir ternura?
Como é possível tanta gente, no vai e vem do transporte coletivo lotado, expressar sua alegria?
E a natureza, como pode, conseguir viver enclausurada nos espaços reduzidos dos jardins envoltos de cimento?
Um piano à entrada da Estação da Luz pedindo para ser tocado...
Poemas declamados vivos, acompanhados de luzes e sombras...
Gentilezas manifestas no exercício do trabalho...
Criação, vontade, esperança, desespero...
Jovens que desfilam a alegria do carnaval!
Negros que não se intimidam com a discriminação!
Velhos, que com as mãos quase desfalecidas, arriscam tocar as teclas do piano, compondo novos acordes em suas vidas...
... Novos acordes a outras vidas!
O mar não basta! A tranquilidade desejada se esvai!
Fica o som ensurdecedor do metrô, a acompanhar aqueles rostos cansados, desesperançosos...
Mas fica também a imagem das mãos que se permitiram sonhar ao toque do piano, e a sensação dos olhos que se permitiram enxergar no som, novos sonhos...

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Forte negro



Hoje ela sentiu saudade,
Saudade de um tempo que não viveu,
Ao lado daqueles olhos negros,
Desejou o seu calor.


Pequeno grande amigo,
Companheiro que aqueceu seus pés,
Forte negro, imponente,
Animal encantador.


Pisque os olhos, mais uma vez, querido?
Não deixe de piscar pra mim.
Tente enxergar que mesmo longe,
Teus olhos negros me farão sorrir...

Bocas roxas

Bocas roxas de vinho
Testas brancas sob rosas
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa

Tal seja, (...) o quadro
Em que fiquemos, mudos
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses

Antes isto que a vida
Como os homens a vivem
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas

Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.

(Ricardo Reis)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Parede da pele


Perguntava se aquilo não seria um sonho. Ansiava despertar a fim de sentir o coração bater mais manso. Era tudo tão real que insistia em acordar. E quando acordou, voltou a sonhar. Agora, a tinta descascada caía mais forte do teto. Era tanta tinta que dava pra salpicar o corpo de pó. Não estava dormindo, mas não estava porque não conseguia. O pintor ia chegar bem cedo pra tapar o buraco que a tinta descascada fazia aumentar. Precisava ficar alerta!


Quanta gente chegou, gente que nem conhecia. Queriam ajudar a consertar o teto, botar ordem na casa, mostrar que por trás da janela suja de poeira havia uma paisagem. Queriam esconder as rachaduras na parede da pele, marcada, afogada, já sem cor. Era tudo tão real que insistia em acordar. Mas quando acordou, quis fugir do sonho para o qual retornou...