sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Não posso (quero)

Já ouvi dizer que somos frutos de nossa educação!
Assim, todas as nossas atitudes deveriam ser explicadas por ela?
Quando pequena a vida familiar era regida pela religião. Era uma oração para acordar, outra no almoço diário, uma outra no café da tarde, as novenas quando a noite despontava e ao dormir, mais uma oração.
Domigo tinha missa. E ai de quem não fosse! Para isso havia uma punição. E ela não era apenas ficar de castigo por não ter reverenciado a Deus neste dia sagrado. Era também aquela vinda do alto, talvez acumulada ao longo dos dias e que não seria paga em vida, mas na hora de respondermos a tudo o que fizemos quando fosse chegada a morte.
Alguns momentos eram gostosos. Mas esses, sempre com um "q" da vida mundana. As reuniões de pais de família em torno da oração e da fartura na mesa. As piadas que vez por outra quebravam as regras da vida cristã. Minha mãe era a primeira a soltá-las, e elas eram sempre seguidas de gargalhadas recompostas pelos guardiões da vigília.
O que ficou disso tudo, pelo menos pra mim, não foi o amor, mas o medo. Seria possível contruir uma vida em torno do medo?
Lembro das vezes em que a casa estava cheia. De fato ela sempre foi muito acolhedora. Eram bolos, sonhos, broas feitas pelas mãos da rainha do lar. Ela era mesmo querida! Às vezes chegavam pessoas que há tempos não apareciam lá em casa. Eram visitas mesmo queridas. Eu era pequena. Eu não entendia por qual razão aqueles momentos não eram suficientemente importantes para lhe deter. Então, perto das cinco da tarde um pedido de licença: - Agora é hora da missa. Tenho de me retirar. Vocês podem ficar à vontade, logo retorno!
Isso era tão estranho pra mim! Como algo podia ser mais importante que aqueles momentos em conjunto, quando amigos se reuniam para matar a saudade, conversar, compartilhar coisas da vida? O que era vida pra mim não era pra ela!
Foi preciso a idade chegar, os estudos, a faculdade, pra que eu não fosse mais à missa. Demorou muito pra eu ter coragem de dizer que aquilo tudo não fazia sentido pra mim. Enquanto isso, ela se tornou a referência, o apoio de todos, a mão amiga, a que sempre dizia sim.
Em torno dela, a família se constituiu, aumentou, tomou corpo, e se fragmentou.
E a ela sempre Deus correspondia.
Históra fantásticas poderiam ser contadas...
A mão de Deus que foi vista, a cura de uma doença incurável, os pedidos atendidos.
Mas parece que aquele cuidado com a vida não foi contemplado. Tudo seria mais importante, até mesmo mais importante que ela.
Hoje, os irmãos brigam entre sim. Estigmatizam uns, ferem outros, e não conseguem perceber a importância que certas coisas têm em relação a outras.
Não se pode obrigar que a família perceba que agora, nada poderia ser mais importande que estar ao lado dela. Mas aí vem o trabalho, os filhos, os compromissos diários (in)substituíveis.
O "não posso" se transformou em regra. O modelo prevaleceu. Somos mesmo fruto da educação que temos. Não podemos obrigar que as atitudes sejam conscientes, que todos sejam capazes de crescer, ter bom-senso, transcender os fazeres para além do que foi dado.
Enquanto isso, ela fica lá.
Já não sabe no que pode crer, afinal, o seu Deus dessa vez não lhe deu respostas, solução.
Muitos estão ao lado dela, que na cama de um hospital se encontra quase desfalecida. São os mais afastados que insistem em lhe dar alento. Percebem a importância que tem em relação a outras coisas. Querem compartilhar mais um bocado de sua companhia, mesmo que inerte, ausente.
A família, o seu núcleo, ao contrário. Da parte deles uma frase se tornou regra: - Não podemos (queremos)! Quando pudermos (quisermos)...
É. Talvez ela não esteja mais lá, assim como as visitas deixadas de lado no passado.
Mas o que pode ser mais importante que a vida? O que pode ser mais importante do que aproveitar o quinhão de tempo que resta para talvez lembrar das coisas boas que viveram juntos? Não sei dizer... Também não posso (quero) estar ao lado dela. E viverei o resto de meus dias (in) consciente disto.
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- Mãe! Lembra da história do pardal e do canarinho que você cantava pra mim quando era criança?
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Essa é a história de dois passarinhos, de um pobre pardal e um rico canarinho:
O pardal estava querendo bater um papinho com o canarinho, bem pertinho chegou, na sua gaiola e assim se expressou!
- Escuta aqui, ô meu chapa! Quer me dar um pouco do seu milho?
- Eu não como milho. Eu como é folhas de alface com ovos cozidos. E fique sabendo, vá caindo fora que eu não gostei do seu palavriado paupérrimo!
O pardal, pedindo desculpas, saiu humilhado com aquela resposta que lhe deu o canarinho malvado.
Pouco dias depois chegou a primavera, cheio de encanto e novidade. O galho seco, lar do pardal, floriu profundamente.
Quase chorava, vendo o pardal voando, aproveitando a primavera que vianha surgindo.
E o pardal tão bondoso, não lhe guardou rancor. Foi levar na gaiola do canário malvado uma flor. Era a flor da amizada, que lhe dava a noção, que não há pobre nem rico quando existe no peito um bom coração.
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Bjos Mãe. Posso ouvir a sua voz cantando essa história pra mim.