terça-feira, 31 de março de 2009

Dona ?


Não tinha bem clareado o dia e as dores iniciaram.
“Puta Merda”. Lá vou eu de novo!
Na sala de espera da emergência, apenas uma senhora aguardava.
Que bom! Pensei eu. Vai ser rápido!
Mas aí veio a triagem e mais uma vez a espera.
- Minha filha. Tu vais também no pronto-socorro? Perguntou a senhora que aguardava.
- Vou sim. Estou esperando ser atendida.
- Eu também, respondeu a senhora. - Essa tristeza tem dado gastura, secado a boca, não aguento mais!!! É a depressão, sabe? Já estou há um bom tempo assim...
Respondi àquela mulher de cabelos curtos, ruivos e de pele já enrugada em virtude da idade:
- É. Depressão é ruim mesmo. Minha mãe tem de vez em quando.
- E tu, o que estás sentido? Perguntou a mulher.
- Tô com uma dor no lado direito da barriga. Já faz uns dias e não aguento mais.
- Tadinha! Disse ela. - Tão nova e sozinha! E continuou...
- Tu sabes que eu também prefiro não incomodar ninguém? Meus filhos estão em casa! A minha filha, coitada, numa tristeza que só desde a morte do meu neto. Foi morto com quinze facadas lá no Sambaqui. Ontem prenderam os bandidos! Já faz um ano. Depois disso, a minha filha nunca mais prestou! A cidade tá mesmo violenta!
- Dona ?, chamou o médico. Então a mulher desapareceu no corredor. À minha frente, apenas a recepcionista e um aparelho de TV gigante, grudado na parede. Fiquei pensando nos programas que passariam durante o dia. Se eles realmente conseguiriam distrair a todos, no meio de tanta espera.
Não demorou muito e veio a doninha, triste, cambaleando, pedindo ajuda à recepcionista para sair dali, pegar o ônibus e ir pra casa.
Então ela me olhou, chegou bem perto e disse:
- Tu és tão linda! Fica com Deus, Débora! Tudo vai dar certo!
Foi aí que dei o primeiro riso do dia. Foi aí que percebi que nem ao menos havia prestado atenção ao seu nome. Mas ela sabia o meu. Ouviu enquanto eu fazia a ficha de entrada e não esqueceu!

É. A porta se fechou e lá foi ela...
Será que seu problema havia sido resolvido? Fiquei pensando...
- Dona ? Desculpe não ter lhe dito. A senhora também é linda! Tudo vai dar certo!

domingo, 29 de março de 2009

Em cena

E lá estava novamente tentando acertar o rumo. Um dia uma amiga lhe falou que às vezes não percebemos quando algo se perde. Enquanto isso, a coisa fica ali, meio de lado, espreitando o momento certo de entrar em cena. Nesse "meio tempo", fazemos um pouco de tudo, e o que é tudo acaba sendo posto de lado, deixando de ser... Vai se desgastando, virando pó, até desaparecer aos olhos, quase por completo, e então o palco fica vazio e até a cena deixa de ser importante à história. É mesmo! Pode ser que a coisa não seja fundamental, insubstituível pro conto. Ainda assim, ela tem vida... Desgastada, transformada em pó, é carregada pelo vento. Em alguns momentos, segue em linha reta. E é certo que não repousa. Acaba retornando com os fortes sopros da ventania. No ar, flutua em círculos. Não é matéria consistente pra alcançar o chão. E assim, o vento a leva cada vez mais a lugares não desejados. Ela tenta alcançar a história, se jogar ao palco onde ocuparia a cena. Quer ser agarrada, tomada como parte importante pelos seus atores. Mas enquanto não consegue, continua a voar, esperando ganhar solidez e repousar num outro palco onde não se transforme em poeira.

Sidônio e Deolinda

- De onde tu és? - perguntou Deolinda.
- Sou da Guarda.
Ingênua malícia no olhar, ela sussurrou no ouvido de Sidônio Rosa:
- Tu és o meu anjo-da-guarda.
O riso dela ganhou espessura, inundando-lhe o corpo. Depois, o corpo já não lhe bastava e ela se encostou nele. O português viu as suas defesas desmoronarem. Os braços dele envolveram-na, a medo. Quando deram conta, estavam enleados, sem saber que parte pertencia a um e a outro. A Praça do Rossio, em Lisboa, ficou, de repente, despovoada. Um homem e uma mulher trocavam beijos e o seu amor desalojava a cidade inteira.
- Tens medo de fazer amor comigo?
- Tenho - respondeu ele.
- Por eu ser preta?
- Tu não és preta.
-Aqui, sou.
- Não, não é por seres preta que eu tenho medo.
- Tens medo que eu esteja doente...
- Sei prevenir-me.
- É porquê, então?
- Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti.
Deolinda franziu o sobrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se a ele. Sidônio não mais regressaria desse abraço.

Venenos de Deus, Remédios do Diabo, Mia Couto

quarta-feira, 25 de março de 2009

O dia valeu!

Sentia-se feliz, apesar de...
Aquela estrada era o caos, e a cidade mais ainda.
Só conseguia ver o cinza, e além dele, os buracos ou bolas de asfalto formadas pelo descuido.
Mas a pouca gente desperta pelo interesse valeu o dia.
Além disso, a barriga crescendo e crescendo e os chutes da vida que não era dela.
Imaginou-se carregando uma, chegou a se entristecer por não ter conseguido.
Quantos meses esperou, e novamente o ventre não foi preenchido.
Mas o coração estava ali, batendo e batendo.
Gargalhou com a lembrança pelo aniversário.
Não sabia que o dia quatorze de março tinha tanta história.
Nem mesmo cogitava que para alguém ele seria importante.
Surpreendeu-se, chorou de tanto sorrir.
E olha que a lembrança chegou atrasada por um problema técnico.
Tudo bem, não importava!
Foi de forma sublime lembrada.
Mais ainda, viu o homem e viu o cão.
Dormiria com aquela lembrança gostosa.
O cão, a abanar o rabo longo e peludo.
O homem, a fazer graça, ocupando de longe o espaço que é só seu.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Esquecimento do mundo


John Evertt Millais, Ofélia

Não conseguia dormir. Já passava da uma da manhã e o peito não dava trégua. Que raio de amor é esse que dilacera? Pensava ela. Estava até mesmo cansada de escrever em terceira pessoa. Vivia com medo de se sentir fraca, impotente, resignada às coisas, como sua mãe fazia. Sentia vontade de gritar, mandar à merda, rasgar a pele que revestia o corpo. Nem mesmo o ar conseguia chegar aos pulmões. Tinha o tal do “bolo” no estômago. Estava cansada do “tudo bem”. Talvez tivesse mesmo de passar pelo “luto” do amor, e enterrar de vez o que havia ficado. Não entendia. Já não era a primeira vez que havia levado uma rasteira. E mesmo depois da rasteira continuou a dizer “tudo bem”.
Queria ser ouvida, queria encostar a cabeça, queria um arroubo de paixão, queria um ninho. Estava na casa do amigo, mas a vontade era de sumir. Ainda bem que não estava no apartamento porque lá a janela era alta demais. Tirando isso, sua vontade era de pegar a estrada e enfrentar a madrugada. Hummm, quantos perigos e possibilidades... É! Era melhor ficar por ali e esperar o dia clarear.
Mas que raio de mulher é essa sem coragem? Sai daí, vai embora e some de vez! Ela sabia que não podia voltar pra casa. Ainda bem que o instinto materno falava mais alto que os destrutivos. Mas tava mesmo com vontade... Vontade de voltar pra casa! E se voltasse, os negros estariam deitados sobre seu ventre e não a deixariam. Arranhariam a porta pra estar ao seu lado, recolheriam todas as roupas do varal pra chamar a atenção, não poupariam miados para dizer o tamanho de sua importância. É! Ela precisaria mesmo do esquecimento do mundo. Tomou um Dramin pra dormir, mas a vida continuava rodando...

domingo, 15 de março de 2009

Dia do meio

Foi acordada com o sol, o dia estava lindo, sem vento, e o mar bem liso. Ensaiou cair na água como fazia seu companheiro Mergulhão, mas a água não teve o mesmo gosto, não conseguiu alimentar-lhe na ausência e nem encher sua boca de sal.
O domingo estava mesmo parecendo um dia do meio, daqueles que provocam rachaduras que se partem. Pensava sobre qual rumo tomaria, mas estava presa, trancada, acorrentada ao abismo.
Dia estranho, mesmo. As coisas simples tinham se perdido. O colchão parecia desabitado, largado no quarto já quase vazio. Queria colocar um vestido, pintar os olhos, colorir sua boca com batom, mas o pincel estava longe, foi levado junto com as tintas que davam à sua vida tanta cor.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Luz


Chagall, Lovers in moonlight
A ausência arde,
As palavras aproximam,
A água salgada, lava a alma,
Mas os pés descalços e sozinhos, sentem-se feridos.

O destino é incerto,
E a certeza é o amor,
Desejo de encontro,
Saudade de suspiro.

Da janela, a lua,
Lua que faz iluminar o quarto,
Espera de um embalo,
Anseio por sonos mais tranquilos.

A luz foi ligada,
A casa arrumada,
O Negro deu ternura,
E tão longe,
Vê-se o brilho daquele que é vida.

terça-feira, 10 de março de 2009

Desejos intangíveis

A distância foi ficando cada vez maior...
O ponto na estrada desapareceu.
Junto com ele, o ser amado. Seres!
Não conseguiu aproveitar os últimos instantes,
estava tão cansada que adormeceu.
Ao fundo do quarto, os sons ainda são ouvidos,
e o abraço, o braço.
As horas tinham passado. O dia chegou ao fim antes mesmo de iniciar.
Quantos pensamentos.
Estava perdida.
Não conseguia ao menos empacotar os livros.
Não tinha vontade de colocar o lençol no colchão onde o cheiro ainda se fazia presente.
Queria mesmo poder gritar, mas a voz não saía.
Parecia que o chão se abria novamente.
E continuava parada, sem forças.
Amava tanto aquele ser, seres!
Desejava tanto compartilhar de suas vidas...
Mas ficaria ao longe, a sonhar desejos intangíveis.

domingo, 8 de março de 2009

Nó na garganta

Mais um dia se passou e ela não desejou sair.
Queria ficar ali, durante dias e noites.
Mais dias, mais noites!
Aquele suor todo escorrido a deixou com um novo nó na garganta.
Mais um nó na garganta!
E quantos nós ainda teria de desatar?
Ela não sabia...
Desejava ficar ali pra sempre, aderida.
Teve de dar ré, deixando aquele grande negro a uivar,
deixando aquele grande homem a voar.
Sentiu seus lábios macios, ainda quentes, guardados na memória.
O amanhã viria, e o depois, e o depois.
Tinha de abrir as portas do guarda-roupas.
Esvaziar o que já estava cheio, preenchido por tanta coisa.
Ela sabia que o coração também ficaria vazio,
E assim como o amanhã, o depois, e o depois...
No futuro, teria de encher um outro guarda-roupas, assim como o coração.
Queria poder enchê-los com as mesmas coisas.
Mas de agora em diante não podia ter certeza.
Talvez elas fossem substituídas, talvez se perdessem e só a recordação pudesse dar conta de que não desaparecessem de vez.
Mas o amanhã viria, assim como o depois, e o depois...

sábado, 7 de março de 2009

Horas


Um contar de horas...
Chegada que não se espera.
Últimos dias de pele, toque e cheiros.
A mão escorrega, percorre caminhos sensíveis.
A língua afaga, deixa na boca o gosto do calor...
O corpo não pesa, cola!
É sentido até mesmo quando ausente.
As cochas deslizam entre movimentos,
ensaiam novas formas, suspiram, entrelaçam...
Quer mais, embora não possa!
Desiste, mas retorna.
E entre o prazer vivido, vão passando as horas...