sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Coisas esquisitas

Algumas coisas são realmente esquisitas...
A chuva que não parou de cair,
O sol que surgiu tímido à chuva,
O cheiro que fez lembrar o passado,
O presente que modificou o gosto pelo cheiro,
A gargalhada que saiu no lugar do choro,
O toque que se dissipou no tempo,
As palavras que não foram ditas...

Não foram ditas, as palavras,
Mas ainda assim o sol surgiu à chuva...
E foi ficando grande, grande, grande,
Tão grande que até as palavras não ditas deixaram de ser sentidas.

Coisas esquisitas!

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Sunshine

Ela fez parte da infância, dos sonhos, da vida...
Ela fez parte das muitas festas em família!
Ela trazia alegria, graça, leveza...
Ela era um sorriso depois da bebida!
Uma saudade grande tomou conta de minha lembrança...
No aparelho de cd, as muitas vezes em que pediu que tocasse Sunshine no violão,
que cantasse em sua companhia!!!
E a saudade permite recordar a delícia de sua espera!
Festa: retrato de tia!

sunshine, on my shoulders - makes me happy

sunshine, in my eyes - can make me cry
sunshine, on the water - looks so lovely
sunshine, almost always - makes me high

if i had a day that i could give you

i'd give to you a day just like today
if i had a song that i could sing for you
i'd sing a song to make you feel this way

sunshine, on my shoulders - makes me happy

sunshine, in my eyes - can make me cry
sunshine, on the water - looks so lovely
sunshine, almost always - makes me high

if i had a tale that i could tell you

i'd tell a tale sure to make you smile
if i had a wish that i could wish for you
i'd make a wish for sunshine all the while

sunshine, on my shoulders - makes me happy

sunshine, in my eyes - can make me cry
sunshine, on the water - looks so lovely
sunshine, almost always - makes me high

sunshine almost al the times makes me high

sunshine, almost always

(Jonh Denver)

sábado, 18 de outubro de 2008

Dois passos

Da janela, a névoa da cidade cinza.
Chuva que não pára de cair.
Telefone que toca...
Confusão de pensamentos.
Vinho que entorpece a alma e adormece a língua.
Saudade do cheiro na pele, do peso, da escuridão.
Esse telefone que não toca!
Aventura que acaba, espera que termina.
Descrença! Cansaço de sentidos!
Há dois passos da porta...
Ausência de coragem.
Há um passo do espelho, solidão...

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Tempo

Era bem cedo quando ouviu o telefone tocar.
Do outro lado aquela voz que lhe causava sorrisos.
Uma surprezinha qualquer, no meio da semana.
Dengo, mimo, ligo...
Fazia quanto tempo?
Estava tão mal acostumada com eles que ficava na espera.
Qualquer coisa podia ser uma surpresa daquelas, deliciosa!
Mas aos poucos elas deixaram de existir...
Não sabia dizer por qual razão.
Talvez o tempo, quem sabe?
Afinal, mais de uma década pode fazer com que algumas coisas sejam esquecidas.
Ups! Uma surpresa na caixa de e-mail!
Desejo de um dia gostoso, esboço de saudade.
Então por que diabos o coração batia forte, cheio de ausência?
Estava mesmo difícil se surpreender.
Talvez porque o telefone não fizesse o mesmo barulho,
Talvez porque o tempo tivesse passado rápido demais...

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Reginaldo

Dia gostoso. Água, toque, movimento.
Outro mundo. Loucura, violência, prisão.
Um cenário. Grade, cama, quarto escuro, verde.
Cheiro...
Lembranças...
Possibilidades!
Sorrisos, gentileza, surpresa.
Impressão!
Vidas eternizadas em retratos.
Histórias deixadas pra lá.
O menino busca o pai, perdido, desconhecido.
Atravessa a cidade, desaparece.
Um cenário. Estrada, movimento, além-mar.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Desvelo


O sol reaparece e a mesa é posta.
Dias de companhia, dias de solidão.
Mas o braço em volta do corpo é o que conta...
E quando não está ali, as patas, o pêlo.
O ronronar na escuridão!
O sol reaparece e o teto pára de pingar.
Gotas!
Gotas e gotas de chuva, de choro velado.
O corpo se despe, a parede vai soltando a tinta.
Mas o corpo despido não é visto,
assim como as gotas pingando do teto deixam de importar.
Muda-se a rotina.
Aquela que dorme no peito vai para os pés, e os aquece.
E o que fica na ponta da cama se aninha ao braço,
põe-se em volta do corpo. É o que conta!
Aquele ronronar na escuridão!

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Segue o teu destino

Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas
O resto é a sombra
De árvores alheias
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.
Suave é viver só
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses
Vê de longe a vida
Nunca a interrogues
Ela nada pode dizer-te
A resposta está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração
Os deuses são deuses
Porque não se pensam

(Ricardo Reis)

That particular time

My foundation was rocked
My tried and true way to deal was to vanish
My departures were old
I stood in the room, shaking in my boots

At that particular time love had challenged me to stay
At that particular moment I knew not to run away again
That particular month I was ready to investigate with you
At that particular time

We thought a break would be good
For four months we sat and vacillated
We thought a small time apart
Would clear up the doubts that were abounding

At that particular time love encouraged me to wait
At that particular moment it helped me to be patient
That particular month we needed time to marinate in what "us" meant
At that particular time

I've always wanted for you what you've wanted for yourself
And yet I wanted to save us, high water or hell
And I kept on ignoring the ambivalence you felt
And in the meantime, I lost myselfIn the meantime, I lost myselfI'm sorry, I lost myself...
I am

You knew you needed more time
Time spent alone, with no distraction
You felt you needed to fly
Solo and high to define what you wanted

At that particular time love encouraged me to leave
At that particular moment I knew staying with you meant deserting me
That particular month was harder than you'd believe, but I still left
At that particular time

Alanis Morissette

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Existência

Ela não sabia dizer por qual razão era a tristeza que a fazia escrever.
Queria mesmo saber em qual buraco havia se escondido a alegria,
e mais ainda, sua vontade de colocar pra fora os sentidos de uma existência feliz.
Não conseguia! A conversa na mesa, as mãos dadas na rua, o colo na cama.
Em tudo isso havia mesmo um bocado de felicidade,
e quando tudo parecia tranquilo, faltava-lhe a respiração.
Lá ao longe, o sono deixava de ser descanso. E bem perto, outro pesadelo.
Será que ela havia deixado de acreditar no amor?
Não conseguia responder a essa pergunta, ainda que tentasse.
Verdadeiramente não dava. Faltava algo.
Assim como também faltava mais um tantão de coisas.
Ela sabia o que procurava. Tinha perdido!
Ficava se perguntando se o que perdeu um dia chegou a existir. Fantasia!
Queria mesmo era deitar a cabeça sobre o travesseiro e dormir.
Mas até o travesseiro não estava ali.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Tudo isso

Gustav Klimt, O beijo

Pele! À flor da pele ela se sentia depois de uma noite tão serena.
Se permitiram dormir, finalmente, colados por horas e horas.
Perderam as horas...
Quantos beijos ela sentiu nos ombros, entre uma virada e outra no colchão.
E ela nem lembrava se havia um dia lhe dito o tanto que gostava daqueles beijos.
Beijos inesperados durante a madrugada, o sono.
Quando ambas as mãos se encontravam e os dedos, entrecruzados,
amarravam seus braços e corpos e pele e tudo,
permitindo que vivessem aquelas horas, aquela noite,
como há muito não viviam.
Ela dormiu profundamente!
E não chegou a ter tempo para se distrair em seus sonhos, pesadelos...
Ela apenas dormiu. Dormiram.
E tomaram café da manhã e riram e deitaram novamente na cama
e se permitiram viver mais alguns poucos momentos de tanta coisa.
Um chapéu, um par de óculos, uma montanha de livros, um cachorro,
um tempero, um sorriso, uma força, uma graça, uma manha...
Ela amava tudo isso.
Mas não se controlava ao observá-lo de costas com as panturrilhas de fora.
E com a cabeça inclinada para o lado, restava a ela morder os lábios,
ou talvez morder todo o resto que dele estivesse à mostra.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Vidas

Enternecida!
Foi assim que ela se sentiu quando foi ter com a vida dos velhos.
E que vida...
Não podia dizer há quanto tempo eles estavam ali, naquele espaço.
Eram muitos, sob os holofotes do abandono, do amparo, da tristeza, mas também da alegria.
Quantos corredores, quartos, camas, filantropia, descaso, cuidado permeavam aquelas vidas...
Não sabia dizer, mas sabia pensar sobre o que viu.
E viu vidas, vidas que circulavam e se entretinham com pequenas coisas, grandes coisas.
Olhos perdidos em face da solidão, do esquecimento.
Olhos atentos aos pontos do bordado.
Olhos fixados nas imagens da televisão.
Olhos que enxergavam com as mãos.
E os sorrisos...
Não eram muitos, de fato, mas os poucos que flagrou eram mesmo profundos.
Para um simples afago, sorrisos.
Sorrisos que se cruzavam, que diziam oi,
que se misturavam às cantigas acompanhadas da percussão e da sanfona.
Vidas, olhos e sorrisos...
E ela saiu de lá verdadeiramente enternecida.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Sim e Não

Um dia, há muito tempo atrás, quando viveu sua primeira paixão, viveu sua primeira paixão.
Foram anos de muitas coisas. Tempo bom, tempo ruim, amor, ódio.
Viveu todos os conflitos da adolescência...
O sentir-se feia, desajeitada, com as pernas finas demais.
Mas se sentia amada.
E nas idas e vindas da primeira paixão, cansou. Desistiu para resistir.
Continuou vivendo conflitos. Insistiu, desistiu, resistiu.
Estranho modo de se repontencializar.
A desistência sempre a fazia se repontencializar.
Talvez porque a desistência a tornava persistente.
Persistente em se redescobrir.
A cada ano que passava ela se redescobria, descobria.
E nas idas e vindas de sua vida, ela se encontrava.
Da primeira a segunda paixão, passaram-se mais um bocado de anos.
Ela já estava mais madura, mas ainda era jovem.
Sentia-se bonita.
Tinha deixado de esconder os pés na areia da praia,
tinha deixado de esconder suas pernas finas, e até arriscava usar mini-saia,

ao contrário das muitas calças de malha fina que colocava por baixo dos jeans
para esconder a magreza.
Ainda lembrava do "não" que deu a segunda paixão.
E esse "não" foi seguido de uma viagem de novas descobertas.
Precisava ficar só, pensar na vida, deixar pra lá as muitas vezes em que disse "sim".
E como se sentiu aliviada, tinha conseguido se libertar.
Aprendeu que o "não" era movimento.
Foi então que amou. E mais um bocado de anos se passaram...
Já estava mais velha, era mulher, e a beleza que tinha ou não tinha já não a incomodavam mais.
Quanto "sim" ela havia dito? Já tinha perdido as contas, mas cada vez mais ela se acostumava com os "nãos" que teria de dizer.
Ela queria continuar dizendo "sim", mas temia em novamente ter de dizer "não".

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Try a little tenderness

Gustav Klimt, Serpente das águas
Ela acordou cedo, como todas as quartas-feiras em que se preparava para trabalhar.
A rotina de sempre: arrumou a casa, a mala pra viagem, a comida, a água e a areia dos gatos.
Já estava sentindo falta deles, como de costume. E como não sentir, se vinha deles todo o aconchego quando retornava?
Estava feliz, voltaria mais cedo...
Não foi como sempre. O namorado a levou na rodoviária, mas ela nem teve tempo pra se despedir como queria. Ele estava com tanta pressa...
Podia contar nos dedos os anos em que ele não teve pressa, e já estava até acostumada, mas isso a entristecia.
Queria ouvir "eu te amo", mas ouviu "boa viagem".

Achou que significava alguma coisa, como sempre procurou achar.
Pessoa difícil que era ela! Ficava pensando...
Às vezes não se aguentava em ver problemas onde não haviam, em não perceber o lado bom de tantas outras coisas. Ser oito ou oitenta de fato a deixava fora de si. E olha que tentava não ser assim...
Mas era quarta-feira e ela tinha de seguir em frente.
Não teve companhia na viagem. Nem conseguiu dormir no ônibus.
Ficou pensando, pensando...
Foi aí que percebeu um garoto que estava feliz porque ia encontrar o pai. Já era grande, devia ter lá uns vinte anos, e não parava de perguntar aos passageiros se faltava muito para chegar ao destino.
Quão alegre ele ficou ao ver o pai, mas pareceu a ela que o sentimento daquele homem em pé, na plataforma, não era o mesmo. Nem mesmo um sorriso pôde ver em seu rosto.
Quantas vidas a acompanhavam na costumeira viagem semanal. E nem sabia quem eram os personagens dessas vidas...
Quanta história poderia ser contada a partir delas...
Mas era quarta-feira. Tinha de seguir em frente!
O companheiro de sempre faltou. Companheiro de estrada, de estadia, de parada.
Não teve violão, não teve conversa, não teve os momentos gostosos que a faziam sentir a rotina da viagem menos pesada. Então mudou a rotina.
Tinha de seguir em frente!
Há algum tempo não se permitia viver outros momentos.
Dançou, riu, brincou, chegou a sentir as pernas cansadas de tanto se movimentar pela pista de dança.
Mas ainda assim ela queria mais, talvez aquele "eu te amo" que há muito não ouvia.
E ela até sabia que não ia ouvir, vai ouvir, pelo menos agora, da pessoa que espera.
Mas ela ouviu "boa viagem". Ouviu também outras coisas que a deixaram feliz. Recebeu sorrisos de amigos que a têm com carinho. E foi dormir querendo acreditar que esses momentos eram suficientes para deixá-la alegre, satisfeita.
Tinha sido um dia bom.
Mas ela teria ficado mais alegre se tivesse ouvido o "eu te amo" esperado.
Até mesmo um sorriso daquele pai, ao encontrar o filho, teria feito ela sentir a vida menos vazia nessa quarta-feira.
Ela sabia: iria voltar, e podia ter a certeza de que ao menos aqueles "dois" que havia deixado dariam a ela pequenos grandes momentos de ternura... Que gostoso!
Faltava um pouco mais de um dia...

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Vá entender

Não conseguiu entender a mudança de rumo,
assim como não conseguia entender tanta mudança de rumo.
Estava cansada de ter de viver tantas mudanças, tanto vazio.
Não acreditava mais, e por não acreditar,
estava prestes a deixar pra lá.
Sabia que não podia mudar as coisas.
Elas já estavam mudadas...
Queria saber por qual razão havia mudado de rumo.
Vá entender...

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Tanta coisa


Vinho!
Tinto seco ou suave?
Tinto suave. Mas pode ser seco, 
dependendo do gosto. 
....................
Cachaça.
Não muita cachaça. 
....................
Canela em pau!
Canela em pau é o mesmo que canela em casca?
Canela em pau ou em casca. 
Tanto faz. As duas são a mesma coisa! 
....................
Cravo, gengibre, limão, açúcar.
Tudo bem misturadinho, e quentinho, 
do contrário não acabaria em quentão!
E que quentão! 
....................
Há tempos não se sentia fora do corpo.
Será que foi o quentão? 
Pode também ter sido o pinhão.
Sabe-se lá! 
....................
Uma noite fria em que recordou 
de uma outra noite fria.
Já se passava mais de um ano 
daquele inverno gelado. 
Gelado, mas quente.
E nem teve quentão e pinhão.
...................
Mas teve dança, teve conversa, 
teve um sentir-se importante.
Durou pouquinho, mas ficou tanta coisa.
E tanta coisa gostosa
....................
Foram pensamentos, risos, pipoca no cinema.
Foram também horas erradas, 
talvez até certas.
E ainda bem que ficou tanta coisa!

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Um deserto

Calahari, Foto Alessandra Rosa, 2007
Tinha o nome de um deserto.
Mas como um deserto podia apresentar tanta beleza?

Ainda é possível lembrar quando foi vista pela primeira vez.
Estava cheia de fome, cheia de sede, cheia de vida,
e ainda carregava consigo uma outra vida.
Presente.
Conseguiu driblar a ventania, conseguiu amolecer o cão,
conseguiu um espaço na cama, hoje com menos aconchego,
já que nela há ausência.
Era livre, era uma imensidão.
E tal como um deserto, com oásis.
Miragem que mirava.
No olhar, uma floresta cheia de encantos.
Em vida, uma felina.
O pêlo branco, macio, ainda pode ser sentido.
Os movimentos, imprevisíveis, eram dança.
E quando dançava, podia falar...
Aprendeu e ensinou.
Foi gata, de Borralheira à Cinderela.
E mesmo quando Borralheira, extremamente bela.
Um deserto, Calahari.
A “grande sede” de viver, sentir, brincar.
A “grande sede” de ser o que foi e o que sempre será.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Notting Hill

Chagall, La Mariee
Achou que viveria em um conto de fadas.
Construiu um castelo de areia, mas esqueceu do quão era próximo da praia.
Viveu dentro dele, sem olhar para os lados.
Da torre, imaginou momentos maravilhosos, e continuou imaginando...
Não pôde compreender a fantasia criada em torno do conto.
Assim como também não pôde compreender o castelo ruindo com o sopro do vento, das ondas do mar.
Tentou construir outro castelo, agora mais distante das águas, da ventania.
Mas ele, às vezes, parecia tão frágil...
Queria mesmo poder construir outra coisa, talvez algo que a fizesse tão feliz que não desejasse viver em um conto de fadas.
Tinha vontade de ser mulher, ao contrário de uma menina perdida em seus medos.
Não sabia qual rumo tomar.
Era Alice, tendo de percorrer vários caminhos...
Era a Gata Borralheira, sentindo-se indesejada...
Era Anna Scott diante de William Thacker, apenas pedindo para ser amada.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Da janela

Ainda era madrugada quando olhou pela janela. Esperava o dia clarear, mas as luzes eram aquelas tremendamente opacas que por alguns anos enxergou naquela cidade erma. Sentia os sons ferozes das tantas figuras que por baixo daquela janela alta circulavam com freqüência, e das muitas que por ali passaram e agora já não passam mais.
Ansiava pelo dia amanhecer, ansiava acordar e ver o sol, que nem sempre aparecia, diante do peso que o estar ali representava. A água quente ajuda a tirar do corpo toda aquela sujeira, cheiro, desespero. E a felicidade aparece diante da possibilidade da partida. Rumo ao destino, ela caminha pela rua, na direção do que a levará ao aconchego. Barulho, velocidade, farol, espera...
Todos passam sem que percebam os que estão a sua volta. Nova janela, agora mais baixa. Dela, a imagem do corpo esfacelado que a cidade e os que nela habitam não permitiram chegar ao destino. Ela se vê, ela se reconhece, ela se sente e deixa de se sentir como mais uma das tantas figuras que por ali passaram e que não passarão mais...

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Crina

Autor indefinido
Sua crina era tão opaca que o vento forte mal podia fazer movimentar.
De que servia aquela crina, tão majestosamente emoldurada para protegê-lo da ação dos predadores? Ele estava ali, caído ao chão. Não podia correr por grandes vales e numa suntuosa dança encantar a fêmea com seus movimentos. Não tinha ao menos forças para um relincho, que naquele instante mais significava um grito de socorro.
Carregou por quantos anos, nas costas, aquele amontoado de ferro velho, plástico e papelão que seu dono encontrou pelas ruas?
Não sabia definir o tempo, era um cavalo, e como tal, outra espécie de ser vivo...
Cavalo, Homem, dois seres vivos diferentes. O primeiro, o cavalo, só, sujeito do meio em que foi criado, portanto, subserviente, exaurido, incapaz de refletir sobre o entorno de sua realidade, uma espécie de ser vivo viva, com necessidades e sentidos, vítima do especismo.
O segundo, o carroceiro, só, produto do meio em que foi criado, portanto, violento, insensível, incapaz de ver no cavalo uma espécie de ser vivo viva, com necessidades e sentidos. O homem e carroceiro, era também um especista.
Enquanto especista, fruto de uma noção de homem insana; razão sem fluidez; ausência de aprendizado. Enquanto homem, capaz de se metamorfosear?
O cavalo, caído, mal podia sustentar o peso do corpo.
Foi levado a um campo onde pôde descansar.
O carroceiro sumiu, é verdade, e o cavalo até conseguiu dar algumas trotadas pelo pasto. Teria, sua crina, brilho e leveza algum dia?
Continuava o cavalo no mundo do homem incapaz de se metamorfosear.

domingo, 27 de abril de 2008

Tempos de calmaria

Queria ela só recordar dos momentos bons que passaram juntos. Das cartas que trocaram, da espera pelos encontros, dos sorrisos esboçados quando caminhavam pela cidade fria, do toque de seus corpos quando ainda se descobriam.
Ela tentava trazer à luz esses momentos compartilhados, e além desses, tantos outros que a memória lhe permitia recordar, insistia tentar recordar, talvez para fazê-la esquecer dos momentos que a fizeram deixar de sorrir, que os fizeram deixar de sorrir.
E nem foram tantos assim, esses momentos. Mas como permitir esquecê-los, quando foram eles que criaram as rachaduras do cristal? E era um lindo pote de cristal...
Ela já não era mais a mesma, os dois já não eram. Tentavam juntos, novamente, reconstruir suas vidas. De forma diferente daquela que haviam compartilhado, é claro, mas nem por isso menos feliz.
Cheia de empenho ela lutava contra os fantasmas, as imagens, as lembranças, os gemidos, o silêncio, a raiva. Tentava mesmo apaziguar o mar revolto. E até tinha, em seus segredos, um apoio. Eram eles que momentaneamente acalmavam o mar. E então quando o mar acalmava, ela deixava flutuar a razão.
Mas eram tempos difíceis, esses...
Calmaria, tormenta, calmaria, tormenta. Desejava a calmaria, mas a tormenta lhe derrubava. Caída, seus segredos apareciam, e neles tinha apoio para se levantar, talvez até vislumbrar na tormenta uma porção gigante de pequenez.
Então ela novamente olhava o cristal. Conseguia mesmo ver nele grande beleza. As rachaduras continuavam ali, serviam elas para deixar turvos os segredos escondidos no pote. Queria acreditar que as rachaduras sumiriam com o tempo, e assim como as rachaduras, os segredos.
Que lindo pote de cristal era aquele! Podia ver as linhas primorosamente desenhadas que o adornavam. Eram linhas tão admiráveis que os sinais de "imperfeição", se é que imperfeitos, não feriam a sua beleza. E da sacada, ela observava o mar em tempos de calmaria...