quarta-feira, 16 de julho de 2008

Tudo isso

Gustav Klimt, O beijo

Pele! À flor da pele ela se sentia depois de uma noite tão serena.
Se permitiram dormir, finalmente, colados por horas e horas.
Perderam as horas...
Quantos beijos ela sentiu nos ombros, entre uma virada e outra no colchão.
E ela nem lembrava se havia um dia lhe dito o tanto que gostava daqueles beijos.
Beijos inesperados durante a madrugada, o sono.
Quando ambas as mãos se encontravam e os dedos, entrecruzados,
amarravam seus braços e corpos e pele e tudo,
permitindo que vivessem aquelas horas, aquela noite,
como há muito não viviam.
Ela dormiu profundamente!
E não chegou a ter tempo para se distrair em seus sonhos, pesadelos...
Ela apenas dormiu. Dormiram.
E tomaram café da manhã e riram e deitaram novamente na cama
e se permitiram viver mais alguns poucos momentos de tanta coisa.
Um chapéu, um par de óculos, uma montanha de livros, um cachorro,
um tempero, um sorriso, uma força, uma graça, uma manha...
Ela amava tudo isso.
Mas não se controlava ao observá-lo de costas com as panturrilhas de fora.
E com a cabeça inclinada para o lado, restava a ela morder os lábios,
ou talvez morder todo o resto que dele estivesse à mostra.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Vidas

Enternecida!
Foi assim que ela se sentiu quando foi ter com a vida dos velhos.
E que vida...
Não podia dizer há quanto tempo eles estavam ali, naquele espaço.
Eram muitos, sob os holofotes do abandono, do amparo, da tristeza, mas também da alegria.
Quantos corredores, quartos, camas, filantropia, descaso, cuidado permeavam aquelas vidas...
Não sabia dizer, mas sabia pensar sobre o que viu.
E viu vidas, vidas que circulavam e se entretinham com pequenas coisas, grandes coisas.
Olhos perdidos em face da solidão, do esquecimento.
Olhos atentos aos pontos do bordado.
Olhos fixados nas imagens da televisão.
Olhos que enxergavam com as mãos.
E os sorrisos...
Não eram muitos, de fato, mas os poucos que flagrou eram mesmo profundos.
Para um simples afago, sorrisos.
Sorrisos que se cruzavam, que diziam oi,
que se misturavam às cantigas acompanhadas da percussão e da sanfona.
Vidas, olhos e sorrisos...
E ela saiu de lá verdadeiramente enternecida.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Sim e Não

Um dia, há muito tempo atrás, quando viveu sua primeira paixão, viveu sua primeira paixão.
Foram anos de muitas coisas. Tempo bom, tempo ruim, amor, ódio.
Viveu todos os conflitos da adolescência...
O sentir-se feia, desajeitada, com as pernas finas demais.
Mas se sentia amada.
E nas idas e vindas da primeira paixão, cansou. Desistiu para resistir.
Continuou vivendo conflitos. Insistiu, desistiu, resistiu.
Estranho modo de se repontencializar.
A desistência sempre a fazia se repontencializar.
Talvez porque a desistência a tornava persistente.
Persistente em se redescobrir.
A cada ano que passava ela se redescobria, descobria.
E nas idas e vindas de sua vida, ela se encontrava.
Da primeira a segunda paixão, passaram-se mais um bocado de anos.
Ela já estava mais madura, mas ainda era jovem.
Sentia-se bonita.
Tinha deixado de esconder os pés na areia da praia,
tinha deixado de esconder suas pernas finas, e até arriscava usar mini-saia,

ao contrário das muitas calças de malha fina que colocava por baixo dos jeans
para esconder a magreza.
Ainda lembrava do "não" que deu a segunda paixão.
E esse "não" foi seguido de uma viagem de novas descobertas.
Precisava ficar só, pensar na vida, deixar pra lá as muitas vezes em que disse "sim".
E como se sentiu aliviada, tinha conseguido se libertar.
Aprendeu que o "não" era movimento.
Foi então que amou. E mais um bocado de anos se passaram...
Já estava mais velha, era mulher, e a beleza que tinha ou não tinha já não a incomodavam mais.
Quanto "sim" ela havia dito? Já tinha perdido as contas, mas cada vez mais ela se acostumava com os "nãos" que teria de dizer.
Ela queria continuar dizendo "sim", mas temia em novamente ter de dizer "não".

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Try a little tenderness

Gustav Klimt, Serpente das águas
Ela acordou cedo, como todas as quartas-feiras em que se preparava para trabalhar.
A rotina de sempre: arrumou a casa, a mala pra viagem, a comida, a água e a areia dos gatos.
Já estava sentindo falta deles, como de costume. E como não sentir, se vinha deles todo o aconchego quando retornava?
Estava feliz, voltaria mais cedo...
Não foi como sempre. O namorado a levou na rodoviária, mas ela nem teve tempo pra se despedir como queria. Ele estava com tanta pressa...
Podia contar nos dedos os anos em que ele não teve pressa, e já estava até acostumada, mas isso a entristecia.
Queria ouvir "eu te amo", mas ouviu "boa viagem".

Achou que significava alguma coisa, como sempre procurou achar.
Pessoa difícil que era ela! Ficava pensando...
Às vezes não se aguentava em ver problemas onde não haviam, em não perceber o lado bom de tantas outras coisas. Ser oito ou oitenta de fato a deixava fora de si. E olha que tentava não ser assim...
Mas era quarta-feira e ela tinha de seguir em frente.
Não teve companhia na viagem. Nem conseguiu dormir no ônibus.
Ficou pensando, pensando...
Foi aí que percebeu um garoto que estava feliz porque ia encontrar o pai. Já era grande, devia ter lá uns vinte anos, e não parava de perguntar aos passageiros se faltava muito para chegar ao destino.
Quão alegre ele ficou ao ver o pai, mas pareceu a ela que o sentimento daquele homem em pé, na plataforma, não era o mesmo. Nem mesmo um sorriso pôde ver em seu rosto.
Quantas vidas a acompanhavam na costumeira viagem semanal. E nem sabia quem eram os personagens dessas vidas...
Quanta história poderia ser contada a partir delas...
Mas era quarta-feira. Tinha de seguir em frente!
O companheiro de sempre faltou. Companheiro de estrada, de estadia, de parada.
Não teve violão, não teve conversa, não teve os momentos gostosos que a faziam sentir a rotina da viagem menos pesada. Então mudou a rotina.
Tinha de seguir em frente!
Há algum tempo não se permitia viver outros momentos.
Dançou, riu, brincou, chegou a sentir as pernas cansadas de tanto se movimentar pela pista de dança.
Mas ainda assim ela queria mais, talvez aquele "eu te amo" que há muito não ouvia.
E ela até sabia que não ia ouvir, vai ouvir, pelo menos agora, da pessoa que espera.
Mas ela ouviu "boa viagem". Ouviu também outras coisas que a deixaram feliz. Recebeu sorrisos de amigos que a têm com carinho. E foi dormir querendo acreditar que esses momentos eram suficientes para deixá-la alegre, satisfeita.
Tinha sido um dia bom.
Mas ela teria ficado mais alegre se tivesse ouvido o "eu te amo" esperado.
Até mesmo um sorriso daquele pai, ao encontrar o filho, teria feito ela sentir a vida menos vazia nessa quarta-feira.
Ela sabia: iria voltar, e podia ter a certeza de que ao menos aqueles "dois" que havia deixado dariam a ela pequenos grandes momentos de ternura... Que gostoso!
Faltava um pouco mais de um dia...